Porque blindar o funk de críticas é algo ruim

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Confesso que já falei bem de funk nesse site, como acontece neste artigo. Ele ainda continua verdadeiro, sobretudo porque reside muito a ideia de que um ritmo popular pode ser algo pelo menos interessante ou igualmente pobre na mesma proporção de um AC/DC, ou mesmo daquele rock conservador e alienado, mas que tem espadinhas e dragões. Entretanto, existe um lado ainda mais perverso, que tem ajudado e muito a propagar um tipo de lixo ideológico, que transpassa a barreira do tolerável.

Não faltam críticas ao funk, muitas delas são de um moralismo sem precedentes. Só que a mesma galera que defende qualquer coisa vinda das camadas populares, ainda que o que faça sucesso esteja muito longe de ser “de camadas populares”, como acontece a determinados setores que se veem como moralmente corretos e socialmente desconstruídos. Permitir que tudo seja aceito, que tudo esteja OK porque “não se pode criticar o funk” é algo não somente descabido, mas igualmente torpe e juvenil.

O grande buzz desse ano surgiu justamente por causa de um hit de verão chamado “Só surubinha de leve”, do MC Diguinho. O grande problema dela reside no fato de exaltar o estupro de uma moça bêbada, não consciente de seus atos e depois largar na rua. Os versos que transcorrem dessa barbaridade são os seguintes:

Taca a bebida, depois taca a pica

Taca a bebida, depois taca a pica

Ta-taca a bebida, depois taca a pica

E abandona na rua

Não que outros gêneros sejam isentos de músicas sexistas ou que encorajem violência sexual contra mulheres. Eu consigo citar, de cabeça, algumas músicas do Combichrist, do W.A.S.P., conforme os exemplos abaixo:

Don’t cry, just suck / Não chore, apenas chupe

And don’t get no cramps in your tongue / E não vá ficar com câimbras na língua

Oh, come on do the nasty, yeah / Oh, venha fazer o que é ruim

Don’t cry, it ain’t much / Não chore, não muito

W.A.S.P – Don’t cry (just suck)

Next time you opened your mouth / Da próxima vez que você abrir a boca

I’ll put my fist down your throat / Vou lhe enfiar um soco goela abaixo

SO deep you can not swallow / Tão fundo que você nem vai conseguir engolir

I’ll make your body hollow / Deixarei teu corpo vazio

You will enjoy thee abuse / Você irá gostar do teu abuso

Cause you got nothing to lose / Pois você não tem nada a perder

I swear I’ll fist fuck your brain / Juro que vou socar o teu cérebro

Until I’m smiling again / Até eu sorrir de novo

Combichrist – Enjoy the Abuse

 

all you dirty sluts you know that you want it / todo mundo sabe o que vocês querem, suas putinhas

give head if you got it / faça um boquete, se vocês conseguirem

all you feminist cunts you know that you want it / suas feministas idiotas, todo mundo sabe o que vocês querem

give head if you got it / faça um boquete se vocês conseguirem

Combichrist – Give Head If You Got It

O problema é que, no geral, as músicas desse tipo refletem um tipo de cultura misógina e sexista, na qual a mulher não é dona de seu corpo, nem tem autonomia para decidir sobre o que quer para si. Neste contexto, homens estão ali para serem satisfeitos pelos corpos das mulheres, sem nem ao menos poderem contestar tal ato.

Não existe nessas produções nenhum tipo de contexto que permita inferir que se trata de uma piada de humor negro, tampouco que serve como forma de abraçar uma realidade e expô-la em sua crueza. Não permite nem uma reflexão crítica, uma vez que enaltece coisas que são abomináveis. Este tipo de letra, associada a um público jovem, é a reiteração de séculos de opressão feminina, que a transforma num produto sob o pretexto de ser “da periferia”.

Esse é um tipo de salvo-conduto que ajuda a propagar qualquer coisa idiota e, depois, quando confrontado com uma realidade que não mais aceita este tipo de coisa, utiliza-se de um discurso de que é “vítima” de um preconceito inexistente. Isso decorre sobretudo pelo fato que, por muito tempo, tentou-se blindar o funk e outros gêneros populares de um olhar mais crítico com relação ao conteúdo ruim que acaba por ser veiculado. Muito disso começa com aquela fase de ostentação, onde a busca por enriquecimento e demonstração de poder econômico suplanta qualquer ideia de libertação do indivíduo. É quase como aquelas palestras de empreendedorismo, na qual você tem o discurso de alguém que vence na vida por mérito e fica rico, mas nesse caso se transforma na única forma de uma pessoa pobre conseguir prosperar na vida.

Quando surgiu este tipo de crítica, muitas pessoas “da esquerda”, mais liberal que qualquer outra coisa, jogou sempre com a ideia de que qualquer crítica é fruto de preconceito, de recalque. Isso faz com que a sociedade ainda aceite este tipo de coisa, uma vez que a defesa impede que uma crítica verdadeira seja feita, sob a pena de soar como preconceituosa. Nem questiono a questão da qualidade estética, porque é um assunto muito mais complexo, falo sobre colocar elementos pontuais que as pessoas leigas consigam entender, como o conteúdo lírico apresentado.

E existem sim críticas a conteúdos ruins, como já o fez o pessoal do Invisible Oranges, por exemplo. O Ad-vers-ary já o fez também num show, numa atitude muito corajosa, mostrando que tanto o Combichrist quanto o Nachtmahr já fizeram conteúdos bastante contestáveis em termos musicais e gráficos. Tem alguns textos aqui criticando certas posturas de fãs que aceitam coisas desse patamar. Tem até músicas, como das moças do Útero Punk, que tem uma das coisas mais geniais nesse meio:

Que papo sexista que papo boçal

Minha roupa não é nada perto do meu ideal

Útero Punk – Papo Sexista

Isso quer dizer que não faltam críticas a outros gêneros. Dá para encontrar no rap, no rock, no heavy metal, sempre tem alguém que pontua o grande problema que existe em todos os gêneros musicais existentes: o sexismo. Até eu, no meu projeto do Genocídio Póstumo, cheguei a receber um e-mail muito mal-educado de um moçoilo que achava que industrial não é lugar para falar sobre feminismo.

A impressão que dá é que de tanto blindarem o funk, de impedirem qualquer crítica, de colocarem que existem problemas em muitas músicas objetificadoras, a galera se assusta quando um MC Diguinho aparece e é cortado do Spotify. Sempre alguém aparece para defender isso, como se a não-censura fosse algo que apenas brancos têm, desconsiderando contextos de produção e até mesmo o próprio contexto da música. Existem músicas sobre abuso, como a Rape Me do Nirvana, que tem um contexto do próprio vocalista. O que acontece é que hoje, diferente de uns dez anos atrás, as pessoas resolvem fazer protestos e expor as problemáticas, como essa moça fez com a letra em seu Instagram.


Sim, isso é o papel fundamental de se criticar também o funk, de evitar a blindagem do gênero sob uma ótica muito canhestra de que qualquer coisa é pautada no preconceito. Pode ser que simplesmente a música não atenda a critérios de qualidade mínimos, pode ser que a letra e seu conteúdo sejam de péssimo gosto ou escolha, pode ser qualquer coisa. Hoje o conteúdo que envolve colocar a mulher numa posição abaixo do ser humano não é admissível, então a choradeira deveria parar um pouco e, quem sabe, a galera começar a ter um pouco mais de senso crítico com aquilo que consome, já que música, para muitos, é apenas um produto a ser consumido.


Editor, dono e podcaster. Escreve por amor à música estranha e contra o conservadorismo no meio underground.