Quando criei o meu FAQ sobre a música industrial e por mais que haja inúmeras referências ao gênero em sites, sobretudo estrangeiros e em algumas matérias aqui mesmo no Groundcast, ainda sim existe muita confusão com relação ao que é ou não industrial. Com tudo isto ainda sim existem problemas no que tange o gênero e sua pseudo-proximidade com o gótico.
Um amigo meu me chamou a atenção para o vídeo abaixo. Não vou me ater ao conteúdo completo dele, visto que não é o objetivo deste texto. Nem ao menos colocar os pontos confusos ou contraditórios dele, embora eu ainda ache que os vídeos que ela fez sejam interessantes para quem é novato na cena a que ela se propõe a explicar.
https://www.youtube.com/watch?v=IHEhy2Ns8eQ
Vamos começar com a seguinte afirmação: música industrial não é gótica, não faz parte do gótico e, de forma alguma, pode ser considerada como parte integrante dos estilos “aceitos” pela maioria que se identifica com a subcultura. Contudo, também é compreensível que exista este problema de pensar em qualquer música eletrônica mais pesada e rápida como industrial, pois é isto que algumas pessoas, incluindo DJs e gravadoras, colocam. E existem razões que colocam o industrial como algo não-gótico e, sobretudo, pertencente a um segmento bem específico da música experimental.
1º motivo: Industrial pertence a contracultura e o gótico, a subcultura
Uma coisa que parece muito complicada para algumas pessoas é entender que subcultura e contracultura andam em caminhos opostos. Como no caso do vídeo, contracultura parece ser um termo próximo ou sinônimo de subcultura, mas, como será dito mais adiante, o industrial e o gótico vão pertencer a espectros diferentes e se relacionam com a realidade de forma diferente.
A contracultura, conforme define Christopher Mele [1], consiste em um grupo de pessoas de classe média americana que, de forma consciente, rejeitam os valores e o estilo de vida dos seus pais em busca de caminhos mais experimentais. É uma briga constante contra o processo de reprodutividade, contra o capitalismo, contra o nacionalismo e contra o culto ao passado e à tradição. Neste meio os hippies foram os primeiros contracultores, assim como os escritores da geração beat. Movimentos musicais como o rock, o punk e alguns ramos da música eletrônica surgiram em contextos de contracultura. O uso de drogas, de cabelos compridos, de vestes coloridas e o sexo livre eram práticas que não se encaixavam no modo burguês de ser.
Dentro deste discurso surgiu a música industrial, começando com as bandas da Industrial Records e indo, mais adiante, a outros projetos e bandas. A música composta por objetos e por modificações eletrônicas, o uso de ruídos, as temáticas nazistas, militaristas, fetichistas e até mesmo contraditórias fazem parte do gênero. Dele também surgiram diversos outros, calcados no mesmo discurso, como o EBM, o Neofolk, o Martial Industrial, o Power Electronics etc. Quase todos os artistas destes gêneros utilizam-se de temas e de ideias que buscam um rompimento com o padrão do underground e do mainstream, num misto de deboche, sátira e apelo ao grotesco.
A subcultura, por outro lado, não rompe com o padrão vigente, mas se adequa a ele. Por mais que um gótico possa ser estranho aos olhos dos não-góticos, o estilo dele é uma apropriação de outros estilos, incluindo outras épocas históricas, literárias e até mesmo cinematográficas. Mark Tittley, no seu artigo “A New Approach To Youth Subculture Theory” apresenta algumas teorias sobre a formação das subculturas. Em comum, pode-se resumir que a subcultura nasce da resposta consciente que se tem dos produtos da mass media e como eles são transformados em coisas novas. Depois disto passa por um processo de homogeneização, onde os elementos passam a ser colocados num determinado padrão estético e parte para a sua hegemonia. Tanto que os elementos de dentro do gótico, tanto como gênero musical como subcultura, se apropriam e ressignificam muitas coisas de dentro da cultura dominante e, vez por outra, a mass media tenta se apropriar destas identidades.
O gótico não busca romper com nenhum padrão social ou mesmo ir contra o establishment, ou seja, continua a pertencer a ordem ideológica, econômica e política que constitui uma sociedade. Tanto que existem estereótipos quando se fala em gótico e eles não surgem do nada. Por mais que muitos deles sejam fruto da desinformação, ainda sim são fortes mesmo entre aqueles que se identificam com os valores da subcultura. E é neste ponto que o industrial se diferencia. Não existe nada dentro do industrial que permita ser padronizado, uma vez que cada pessoa e cada artista expressa de uma maneira diferente. Os japoneses tendem a ser mais performáticos, os ingleses tendem a temáticas mais políticas, mas nem isto pode ser dado como verdade. O Jugend Suitcliff tem temáticas próximas as do grindcore, enquanto o Merzbow se preocupa muito mais com o desenvolvimento da estrutura da música.
2º motivo: militarismo não é sinal de industrial
Uma coisa que o vídeo deixa a entender é que o visual militar remete ao industrial. O que acontece é que os valores para a estética militar possuem representações diferentes em ambos os gêneros.
Dentro do industrial, o militarismo funciona como uma espécie de “tiração de sarro” com o moralismo da cultura dominante. Enquanto as pessoas veem na guerra um elemento indesejado na história da humanidade, por outro lado estas mesmas pessoas apoiam medidas militares para garantir a paz e a segurança. É com esta hipocrisia que os símbolos ligados ao militar são usados dentro do industrial, trazendo para si toda a carga negativa e usando a estética como forma de chocar as pessoas.
Simon Fords[2] reforça que o uniforme militar representa uma espécie de conformismo com valores que reprimem a liberdade de expressão. Também coloca que os primeiros grupos de música industrial usavam deste tipo de estética para zombar do autoritarismo e da rigidez com que o Estado tratava as pessoas e como isso refletia em seu comportamento, pois fazia com que as pessoas se sentissem como parte de alguma coisa maior.
E é exatamente neste ponto que o militarismo dentro do gótico é diferente. Nele é trabalhado a questão do fetiche e da relação de poder, parâmetros que foram ressignificados a partir da cultura BDSM. Não são como oposição e, em muitos casos, ganham uma conotação mais erotizada, a despeito de nem sempre ser de forma consciente. Ou seja, o uniforme reitera e reassume o papel do poder dentro do discurso subcultural, adaptado e modelado de acordo com o ethos[3] das pessoas que ali se encontram inseridas.
3º motivo: nem toda música eletrônica é industrial
Talvez o maior problema de todos seja o de alguns grupos, como o citado no vídeo, o Infekktion. Ouvindo com bastante calma uma música deles já se pode dizer que nem de longe se passa por música industrial ou mesmo post-industrial. E são grupos como este que, infelizmente, causam uma confusão danada com relação ao que está ou não dentro do industrial. Se você quer mesmo saber o que é música industrial, recomendo ler este artigo aqui. Nele tem todos os dados e detalhes sobre o gênero, de forma bastante extensa.
Tendo isto em mente, vamos tentar entender o que acontece neste caso. Assim como o rótulo “gótico” tornou a música mais atrativa quando foi colocada em grupos como Evanescence e Nightwish, o termo industrial se torna, da mesma forma, uma marca para os góticos. Por conta do gênero conter músicas com bastante “peso”, devido as saturações e distorções sonoras, como no caso do Throbbing Gristle e também por grupos como o Einstürzende Neubauten terem caído no gosto dos góticos em sua fase electro-industrial, a procura por qualquer porcaria eletrônica pesada alimentou uma onda de projetos de techno, hard techno, trance e, em alguns casos, de electro-industrial mais dançante a serem chamados de industrial. Isto ocorre sobretudo em países como a Alemanha e os EUA, onde toda uma cena eletrônica se criou em torno desses grupos de “industrial”.
Por isto, para uma parcela significativa dos góticos, qualquer som eletrônico sombrio era automaticamente industrial. Isto atende convenientemente os donos de casas noturnas, pois era mais fácil você conseguir dançar e encher uma pista de dança com música eletrônica; isto facilitou a vida de muitos DJs, pois é bem menos trabalhoso mixar músicas eletrônicas durante as festas; e, por último, isto foi de grande ajuda para as gravadoras como a Out of Line, que simplesmente vendiam qualquer coisa e propagandeavam como industrial para serem inseridas dentro do gótico. Com isto, também foram surgindo os fãs de música eletrônica voltada para os góticos, totalmente desprendida de qualquer conotação “gótica”, mas com visuais bastante exagerados, quase caricatos em algumas situações e que são rejeitados por uma parcela significativa dos góticos: os cyber góticos.
Então, como resumo, o industrial não é somente um baixo, uma bateria pesada (o famoso “bate-estaca”) e um vocal distorcido. Isto pode ser qualquer coisa, menos industrial.
4º motivo: não existe uma subcultura industrial
Um grande motivo para a música gótica e o industrial não se bicarem é justamente este: o industrial não constitui subcultura e tampouco tem padrões e estereótipos de comportamento para quem gosta deste tipo de música. Mesmo com bandas flertando com a música pop (como o Front 242 e o Psychic TV), nenhum deles soa pop o bastante para constituir um grupo e muito menos carregam valores que permitam juntar as pessoas e criar um padrão estético-ideológico.
Os rivetheads surgem com as bandas de EBM e de Electro-Industrial, este último grupo incorporando instrumentos como guitarra, bateria e outros não eletrônicos, fazem um grupo que se junta especificamente para curtir música eletrônica e, em alguns casos, rock e metal industrial. Sua vestimenta reflete as ideias dos primeiros grupos de industrial e EBM, que tinham um lado crítico perante os símbolos de poder. E alguns deles passaram a frequentar casas noturnas frequentadas por góticos, por conta de nestes espaços também tocar EBM e Electro-Industrial. Mas são dois grupos bastante distintos.
Por isto, não dá para colocar o industrial como algo pertencente a um grupo social e nem atrelado a cultura dominante. Sua natureza autônoma, pessoal e, acima de tudo, vanguardista, faz pouco sentido para um gótico, ligado, sobretudo, a uma estética que se apropria de outras estéticas. Não existe nem um nome para os fãs de industrial, quanto mais um padrão que te permita dizer quem é a pessoa que escuta este tipo de música. O próprio termo serve mais para agrupar pessoas que ideologicamente assumem determinadas posturas como artistas do que características sonoras. É mais fácil você dizer que o Sisters of Mercy é rock gótico do que falar que o SPK é industrial, pois também ele será noise, será experimental, será post-punk e, porque não, será synthpop.
Por isto…
Este texto de alguma forma é para atacar a autora do vídeo, muito menos os góticos. Mas ele serve, sobretudo, para que as pessoas confundam menos as bandas industriais com bandas para o público gótico. Se você quer conhecer alguma coisa de industrial, aconselho dar uma olhada na Tesco Organisation e na Geometrik. Nem que seja para depois dar uma olhada no YouTube, mas vale a pena para se informar.
[1] Citação presente no livro Music of the Counterculture Era, de James E. Perone
[2] Citação presente no artigo Exploring The Evolution Of Industrial Music: A Historical And Analytical Perspective, de Ruth Vecchio, presente neste link.
[3] O ethos discursivo é a relação entre o estereótipo e a realidade. São determinadas práticas e determinados pensamentos que fazem parte de uma coletividade e se relacionam com uma mente coletiva, tornando-o válido. Assim, dentro da subcultura gótica, institui-se que o militarismo faz parte de um estereótipo fetichista por meio da apropriação e que deve convencer o outro de sua legitimidade. Para mais detalhes, sugiro a leitura do livro Ethos Discursivo, organizado pela Ana Raquel Motta e Luciana Salgado.
PS.: Ô banda ruim essa Infekktion, viu?
Concordo em ponto e vírgula…..
Parabéns pela matéria!
Muito obrigado.
Aqui a autora do vídeo falando, Fabio Melo!
O seu texto está absurdamente explicativo e eu gostei muito, de fato.
Primeiramente, eu sei que o Industrial e EBM não fazem parte da subcultura gótica… Só mencionei-os no vídeo por conta das influências e ressignificações que o gótico adquiriu/fez tomando-os como parâmetro, as quais você mesmo citou no texto. Fiz o mesmo no primeiro vídeo, ao mencionar as os bárbaros Godos e a Arquitetura Gótica, que não tem a ver com a subcultura, mas cujos termos foram ressignificados centenas de anos depois.
Também não lembro de ter mencionado que Infekktion era uma banda industrial – só falei que era uma banda que gostava muito, que tocava um eletrônico dark e que tinha muitas referências de conceitos abordados pela subcultura gótica. E eu acho uma ótima banda, poxa rs
De fato, nos vídeos eu estava tentando falar de forma básica, para que os leigos que comumente criam estereótipos errados sobre o que é gótico deixassem de fazê-lo – mas o tiro saiu lindamente pela culatra e o vídeo abriu espaço para muitas interpretações errôneas, que mais confundiram que explanaram o assunto.
Então, vamos lá. Até porque pelo menos aqui eu sempre me sinto no direito de responder adequadamente quaisquer comentários que sejam feitos de forma honesta.
Em primeiro lugar, o vídeo tem uma série de problemas além do que eu já citei aqui. E não existe ressignificação do industrial pelo gótico, tampouco apropriação. O que vai acontecer é que o nome industrial tem um apelo comercial muito forte entre o povo do meio gótico. Assim, qualquer coisa que venha com o nome “industrial” se torna mais atraente, até mesmo pelo peso que o nome carrega.
Em segundo lugar, um conselho pessoal: pesquise em mais fontes. Quando você diz que o gótico ressignificou o industrial, isto é um erro tremendo, uma vez que, exceto por um white noise ou um pink noise usados na música, tudo do chamado “eletro-goth” não passa de música eletrônica de fácil audição com um teor mais sombrio. E todos os gêneros, sem exceção, tem um segmento mais sombrio. Existe o IDM mais sombrio, existe o neofolk mais sombrio (chamado de dark folk em alguns meios), tem até o industrial mais sombrio. E nenhum deles foi apropriado e ressignificado pelo gótico. Apelar para um lado romantizado do industrial é tipo você falar que o Iron Maiden é um pagode pesado, compreende?
Quando eu fiz este artigo, eu dei uma olhada em pelo menos nove fontes distintas, incluindo alguns artigos acadêmicos sobre o assunto. Quando vc tentou fazer o vídeo, o que aconteceu foi que vc tentou falar de muita coisa e acabou não dando a devida atenção a nada, inclusive cometendo uma confusão danada, pois uma hora você diz que o gótico abraça tudo que é sombrio, mas depois nega o metal, que tem uma vertente sombria. O ideal seria, ao menos em tese, dizer que existem gêneros cujas vertentes mais sombrias e atmosféricas agradam mais os góticos, como algumas bandas de EBM, de new wave e de glam punk. Mas tudo isto de forma bastante pasteurizada e superficial, assim como o metal quando se apropria da música erudita por exemplo. Isto dá um ar de legitimidade a pessoas incluírem o medieval, que por si só não tem lá muito a ver com o gótico, exceto pelo medieval romântico, ou seja, aquele que aparece nos romances do século XIX e em produções cinematográficas, o que também ajuda na constituição do ethos do grupo que se denomina gótico.
O gótico é uma ressignificação de coisas da mass media, afinal, filmes de terror, exagero romantico, melancolia extrema, tudo isto está inserido dentro da indústria cultural. O que diferencia do mainstream é o alcance do publico. Por isto, quando for fazer os vídeos, peço que tente sair um pouco dos textos do Kipper e ir para outros locais, como o Scathe-Demion. E visite aqui sempre que desejar, o Groundcast ainda é um sute onde tentamos dialogar com os outros.
Maravilha! Você foi a única pessoa que de fato apontou o que achou de errado no vídeo, ao invés de me xingar sem ao menos tê-lo assistido. Obrigada mesmo! Tenha certeza de que irei levar seus conselhos no que diz respeito às pesquisas à sério!
“O ideal seria, ao menos em tese, dizer que existem gêneros cujas vertentes mais sombrias e atmosféricas agradam mais os góticos, como algumas bandas de EBM, de new wave e de glam punk.” Foi quase o mesmo que escrevi (com outras palavras) em meu facebook, após ler seu texto: “Nem tudo o que leva a alcunha de gótico o leva por fazer parte da subcultura gótica ~ Gothic Metal e Paste Goth estão ai para provar isso ~ porém, o gótico pode ter certa identificação com alguns elementos desses aspectos góticos-não-góticos e adotá-los para si.”
Por ter passado informações erradas e falado superficialmente de outras (o que abre um tremendo buraco negro para as mais diversas interpretações ainda mais erradas), acabei por excluir o vídeo.
Abraço!
E por que cargas d’água eu iria te xingar? Se você observar, o que eu coloquei no texto são coisas que as pessoas normalmente falam de errado e, infelizmente, você colocou isto no youtube. Eu não acho legal essa coisa de culpar os outros e ficar apontando o dedo. Aqui no site a gente trabalha num escopo informativo e, quando preciso, dialogamos, porque a gente erra pra caralho aqui também.
Eu se fosse você não teria excluído o vídeo, apenas teria dado um tempo e gravado um outro para fazer as retificações, inclusive ficaria mais interessante até mesmo como auto-análise. Quando eu falo besteira na página do Groundcast no facebook eu deixo o que foi colocado, justamente para poderem ver que sou sujeito a falhar e muito.
E dica sobre o Pastel Goth: pesquise por soft grunge, Ele se origina como uma subdivisão de uma “micro subcultura” que surgiu no Tumblr. Como o Tumblr aqui no Brasil tem menos força que no hemisfério norte, aqui no pastel goth não pegou e acabou sendo, ainda que de forma bastante esporádica, colocado como parte do perky goth, mesmo que eles não admitam isto. Aliás, o soft grunge é algo bastante interessante, visto que é o que a gente pode chamar de “estilo para menininhas”.
O que eu acho estranho é que no artigo seguinte você cita uma mescla de industrial e gótico…
http://groundcast.com.br/um-breve-guia-ao-gotico/
Se você ler direito, vai notar que eu traduzi um artigo. Ele não é meu.