A cena alternativa tá cheia de neonazi e a culpa também é sua

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Em tempos recentes algumas pessoas de visão mais progressista e de esquerda chocaram-se ao saberem do envolvimento de um pessoal do Mgla com gente muito suspeita, para dizer o mínimo. Também descobriram agora que o Mikko Aspa, um dos responsáveis pelo Deathspell Omega, é um membro bem ativo da cena NS Black Metal (Black metal que propaga ideias como supremacia branca, islamofobia, entre outras coisas bem agradáveis), além de ter um projeto de Power Electronics fazendo apologia à pedofilia.

Há cerca de uns quinze anos, qualquer coisa envolvendo grupos de ódio, como supremacistas brancos, White Powers, NSBM, entre outros, eram distantes da realidade da maioria da cena alternativa. Na verdade ainda o são. Quando se falava, por exemplo, em um músico fascista, a maioria associava imediatamente ao Varg Virkenes ou, no máximo, a uns grupos de nomes esquisitos com umas runas nórdicas. Era muito mais comum ter uma galera bem conservadora, como o Dave Mustaine, o povo do Metallica e acho que, para falar a verdade, o grosso do metal dos anos 1980 é bastante conservador, uns mais, outros menos.

Contudo, esses discursos ganharam corpo com a internet. Ganharam voz com o YouTube. Ganharam corpo com o Facebook e seus grupos. Ganharam tamanho com os messengers e os chans, tipo de fórum onde posta-se de forma anônima. Ao mesmo tempo em que crescia a percepção de que grupos antes marginalizados mereciam (e ainda merecem) espaço, com negros, mulheres, LGBT+ e outros fazendo parte das cenas metal, gótica, industrial, indie e demais que possam surgir. O pop insurgente também dando voz a essas pessoas. Tudo para incluir cada vez mais, ainda que a inclusão deva ser questionada quanto a seus objetivos e suas consequências.

Tudo isso criou um senso de pertencimento, de identidade. Stuart Hall identifica isso muito bem e também mostra que se antes essa identidade era presa ao local de nascimento. Hoje você pode se sentir parte de algo por conta de um processo de hibridização. Nesse contexto o homem branco heterossexual sente a si mesmo ameaçado pelo domínio cultural da diferença. Precisa lutar contra o feminismo, contra o politicamente correto, contra o enviesamento ideológico, contra o esquerdismo e outros inimigos que promovem a destruição dessa sociedade outrora unificada.

Nesse turbilhão todo abre-se espaço para um discurso antes relegado a meia dúzia de gatos pingados e fazer parte disto era vergonhoso. Eu bem me lembro quando uma banda neonazista foi chamada para um tributo ao Katatonia. Naquela época quase não saiu, pois as outras bandas cairiam fora se este grupo continuasse, forçando a sua substituição.

Hoje essas ideias de supremacia, de ódio, de intolerância estão na ordem do dia, como dizia meu antigo professor de literatura portuguesa. Entretanto, ninguém assumirá como discurso de ódio. Usarão subterfúgios como “ah, é só uma música”, “você não tem senso de humor”, “é tudo frescura”. Existe um nome para esse tipo de padrão: semantic bleaching. De forma resumida, é quando uma palavra perde o seu peso como expressão e se torna banal. Por exemplo, quando em português alguém fala “ai, caralho”, não está a se referir a um genital masculino.

Nesse momento instaura-se um problema. Essas pessoas não veem nada de absurdo em falar de matar judeus por serem judeus. Matar e estuprar mulheres? De boas. Gays deveriam ser empalados? Só se for hoje. Essas expressões são carregadas de uma semântica violenta, grosseira e agressiva. Há nesses idiotas dessensibilização, fazendo com que não vejam outros fora de seu padrão “homem branco heterossexual” como ser humano.

E é aí que você entra. Sim, você mesmo. Se esse povo ganha voz, é porque você não liga. Você acha que não tem nada de errado permitir gente assim na cena? Que a sua banda abra o show de outra cujos integrantes têm algum fetiche bizarro pelo Hitler usando cuecão de couro verde? Você levanta a bandeira de “soque um nazi”, mas vai lá feliz ver comprar ingresso para o show do Gorgoroth e usa a desculpa de que está lá pelo som, de boas mesmo?

Vou defender a ideia de que boicote é a coisa mais imbecil a fazer como protesto. Isso vale para qualquer um que promova boicote e nunca promovo por saber que não afeta o discurso e nem o artista. Eu, enquanto pessoa, não frequento e nem consumo / escuto / assisto material de gente envolvida com esse discurso porque não me sinto confortável. Porém, tento sempre quando posso fazer o máximo para as pessoas reconhecerem a existência de um problema e para elas fazerem algo a respeito.

Você, como frequentador da cena, não deixe que o discurso de ódio entre no seu show, na sua balada gótica, na sua casa, no seu barzinho de banda cover ruim. Denuncie quando alguém estiver envolvido com isso for tocar, avise seus amigos e pessoas próximas de que o local é mal frequentado, para eles escolherem se continuarão ou não a visitá-lo. Exponha casos como o do Phil Anselmo fazendo saudação merda. Se você for homem, não seja machista ou LGBTfóbico e nem deixe que seus amigos o sejam. Ajude alguma minoria da cena vítima do discurso de ódio.

Você, como membro de banda, não toque com bandas ou com promotores que apoiam ideologia de ódio. Use seu espaço para promover a inclusão e também para lembrar que a cena alternativa / underground é feita para acolher quem não está confortável com o preconceito do mundo. Use suas redes para ajudar a combater esse tipo de discurso, não só pra divulgar seus shows e vender seu merch, que também são coisas importantes. Não toque com pessoas que defendam fascismo e outros tipos de ideologias similares, certamente eles vão encontrar outros que topem ser tão baixos quanto eles.

Para tudo isso é preciso mudança. Não deixar mais para lá, não dá para continuar a dizer que é só pela música. Pelo menos não nos tempos em que estamos.


Editor, dono e podcaster. Escreve por amor à música estranha e contra o conservadorismo no meio underground.