Um gênero certamente controverso e inovador, o industrial é, sem sombra de dúvidas, a vanguarda da música popular. Seja pela forma de composição, postura dos músicos ou mesmo a estética sonora, ainda sim é algo novo, mesmo tendo surgido há quatro décadas.
Neste artigo vocês lerão o que é este gênero tão disperso e tão inovador, que ainda causa estranheza aos que não estão acostumados ou para quem é “de fora”.
Os experimentos musicais do Modernismo
O primeiro músico a enxergar a natureza sonora do ruído foi o italiano Luigi Russolo, com seu manifesto “A arte do barulho” (L’arte dei rumori no original). Neste texto era colocado como os instrumentos convencionais estavam limitados e que somente o barulho, que era imprevisível, permitiria a gama total de sons e músicas do homem do futuro. Russolo era músico e teórico musical, o que fica evidente no começo do seu manifesto, onde ele traça a história da música ocidental e explica, por meio de uma teoria, que os ruídos poderiam ser alinhados em seis categorias, tais como sussurros, gritos, sons de objetos batendo no metal, trovões e outros. Isto era uma forma de mostrar como a música moderna precisaria sair do sistema convencional de composição e abraçar algo mais dinâmico, que incorporasse as ciências que evoluíam na época. Era alinhado com o futurismo de Marinetti, uma vez que ambos defendiam a ideia de que a máquina seria o futuro.
O vídeo abaixo é uma releitura de uma das peças de do grande italiano. Foram reconstruídos os “entonadores de ruídos” (intonarumori, em italiano) e dá para ter uma noção de como se dá este tipo de música.
Na década de 1950 tem inicio na França o movimento do Musique Concrète. Iniciado por Pierre Schaeffer, engenheiro eletrotécnico e locutor de rádio, o movimento musical se aproveitou de um conceito hoje chamado de eletroacústica ou acusmática, que consiste na manipulação de sons por meio eletrônico. O que permitiu isto foi a invenção da fita cassete, que também permitiu a criação do conceito de loop. Em música (sobretudo eletrônica), este loop é um som pré-gravado que pode ser alinhado com outros sons, criando um ritmo melódico. Esta gravação também poderia ser manipulada, invertida e até mesmo transposta, criando novas possibilidades sonoras.
Estes avanços permitiriam, décadas depois, o surgimento de uma música feita por meio de máquinas. Estas máquinas, os primeiros sintetizadores, dariam origem ao gênero eletrônico, onde também se encaixa o industrial.
Muitos músicos eruditos se valeram das ideias do Schaffer, tais como Edgard Varèse, Pierre Boulez, Iannis Xenakis, Stockenhausen e outros, levando a noção de fazer música muito além das notas convencionais.
O Krautrock, surgido na Alemanha em 1970, começa com os experimentalismos musicais mais voltados para a música popular. Surgiu com jovens que queriam sair do Schlager, um estilo voltado para coisas mais romantizadas. Estes novos músicos começaram a usar o sintetizador como uma ferramenta musical, experimento sons, possibilidades e texturas. Bandas como Tangerine Dream, Neu!, Faust, Amon Düül II, entre outras, usavam a música eletrônica de forma bastante inédita, fugindo do convencionalismo que o rock inglês havia assumido. É neste contexto que também surge o Kraftwerk, um dos maiores ícones da música eletrônica.
Industrial Music for Industrial People…
Com base em todos estes contextos é que temos o surgimento da dita música industrial. Toda esta ideia começa com um grupo performático inglês chamado COUM Transmissions, formado por Genesis P-Orridge e Cosey Fanni Tutti, contando com diversos membros ao longo da duração do projeto. Fortemente influenciados pelo dadaísmo e pelos Merry Pranksters, o grupo tinha performances que envolviam escatologia, sado-masoquismo, pornografia e outros temas que eram chocantes para uma sociedade como a inglesa. Ao final deste grupo surge o Throbbing Gristle (TG), que contou também com Peter “Sleazy” Christopherson e Chris Carter.
A proposta do novo trabalho era explorar um discurso contra-cultural, indo de encontro com o uso de imagens nazistas e todo o espectro de imagens que mostrassem o lado negro e doentio do homem. A fundação deste trabalho se deu em 1976, já com o fim do seu trabalho anterior.
O que mais chamou a atenção para o novo projeto de P-Orridge foi o uso de estruturas não-convencionais para a música, como os loops, as manipulações sonoras e os ruídos. Isto bastava para que as pessoas não entendessem, num primeiro momento, qual era a proposta do TG. Segundo seus fundadores, era um resgate do ideal punk, surgido na década de 70, que pregava a exploração de símbolos e de contra sensos para expor as hipocrisias sociais. Era este o lado “perdido” do rock, que ia contra um sistema de valores dados como “certos”, arregimentados no capitalismo. O TG nunca propôs nenhuma posição política, o ideal era o da anarquia, do caos e da falta de unidade.
Juntamente com a fundação do TG veio a Industrial Records, que apoiava bandas como Clock DVA, The Leather Nun, Cabaret Voltaire, SPK, o artista performático Monte Cazazza, o autor beatnik William S. Burroughs, entre outros. E foi Cazazza quem cunhou o termo “industrial” para música com o slogan “Industrial Music for Industrial People” (música industrial para pessoas industriais).
Até hoje definir exatamente o que é industrial fica complicado. Pode-se dizer que inicialmente eram estas bandas da Industrial Records, que tinham em comum o experimentalismo e a música não-convencional. Paralelamente tivemos bandas como Einstürzende Neubauten na Alemanha, o Die Form na França, o Test Dept em Londres (propondo, junto com o Neuebauten, um som vindo de fontes mais “orgânicas” como latas, sucatas e outros objetos), entre muitas outras bandas e projetos. Isto aconteceu no período correspondente entre as décadas de 1970 e 1980, com grupos experimentando musicalmente e adicionando mais e mais elementos ideológicos a proposta musical.
Definir e limitar
É impossível definir o que se caracteriza como Industrial exatamente. Todas as bandas pioneiras do estilo são diferentes entre si, tal qual o Test Dept não se assemelha ao Throbbing Gristle que também não se parece nem um pouco com o SPK. E como definir isto?
Talvez a ideia do caos e da desordem ajude a entender como funciona este gênero. Perceber que o rótulo serve para agrupar bandas semelhantes musicalmente faz com que o próprio industrial não possui unidade musical para tal coisa. Então podemos dizer que é uma ideia cronológica e discursiva o gênero. Cronológica porque serve para o surgimento de uma música que não atendia a um apelo comercial e era, acima de tudo, uma obra de arte moderna/pós-moderna. Discursiva no quesito que toda a banda /projeto tinha uma ideologia própria, que ia sempre contra um sistema de valores. Tanto que os temas mais comuns dentro desta leva de bandas eram a anarquia, o sadomasoquismo, a magia negra, a escatologia e tudo que pudesse ser dado como contravenção. O discurso de autoridade, o militarismo, os ideais politizados e o extremismo também foram incorporados mais tarde, nas subdivisões que vieram depois.
O post-industrial
A partir dos anos de 1980 o gênero industrial passou por mudanças significativas, onde grupos incorporavam mais e mais influências, com alguns distanciamentos do seu conceito original. Mesclas com a própria música eletrônica, avanços na manipulação sonora e mudanças de eixos ideológicos marcam o post-industrial. Mesmo estas definições são difíceis de serem exatas e elas podem se misturar de forma a causar ainda mais confusão. A falta de uma unidade faz com que cada um faça da maneira que quiser sua música, tornando muitas vezes os projetos únicos. A seguir um resumo dos estilos derivados:
EBM (Electronic body music): surge da mescla com o dance e com temas ligados ao militarismo. O termo foi usado a primeira vez para classificar o disco “The Man-Machine” do Kraftwerk, sendo mais tarde também utilizado pelo grande nome do estilo, o Front 242. A Bélgica permanece até hoje como um dos maiores centros do estilo. O EBM sofreu muito com a incorporação pelos góticos, ficando descaracterizado e ganhando o apelo comercial, o que culminou com o Anhalt EBM, numa tentativa de resgate da identidade do estilo. Grupos importantes: Front 242, Bigod 20, A Split Second, mais os grupos do Anhalt EBM, como o Sturm Cafe, Container 90, Jäger 90, Spetsnaz.
Electro-Industrial: surge como um estilo próximo ao do EBM, mesclando também o synthpop, mais a distorção de vocais, além do uso mais amplo de sintetizadores, numa proposta mais abrasiva. Também foi outro gênero que sofreu com a incorporação dos góticos, fazendo com que as bandas novas incorporassem o trance e o techno, criando o Dark Electro e afastando-se das referências industriais. Bandas importantes: Skinny Puppy, Die Form, Android Lust, Leæther Strip, Acylum, Front Line Assembly e o Velvet Acid Christ.
Noise: nasce do uso de ruídos, produzidos eletronicamente ou por meio de objetos, colocados muitas vezes de maneira desordenada. Há quem diga que boa parte do começo do industrial tenha sido, na verdade, o que se chama hoje de Noise. No Japão ganhou certa popularidade, que deu origem ao termo “japanoise” para as bandas surgidas ali. Artistas importantes: Bastard Noise, Esplendor Geométrico, Boris (em alguns discos), Merzbow, C.C.C.C., The Gerogerigegege, Contagious Orgasm, Pain Jerk, Smegma, Masonna, Stalaggh, NON.
Power Noise/ Rhytmic Noise: Está para o noise como o ebm está para o industrial, ou seja, um ritmo que mescla dance, techno e trance com música noise. É um estilo que está mais próximo dos góticos, sendo feito para eles e para os “rivetheads” que gostam de pistas de dança. Bandas importantes: Xotox, Noisuf-X, Terrorfakt, Alter Der Ruine, Panzer Division, C/A/T, The Peoples Republic of Europe e SAM.
Power Electronics: surgido no final da década de 80 como uma continuação direta do industrial, onde existe um aprofundamento nas distorções sonoras e um extremismo maior por parte dos seus integrantes. Foi cunhado por William Bennett para descrever o som do Whitehouse, cujo objetivo era mostrar a música mais extrema possível. Aqui o extremismo musical e ideológico são essenciais. Bandas principais: Whitehouse, Blackhouse, Genocide Lolita, Haus Arafna, Mourmansk 150, Satanismo Calibro 9.
Death Industrial: tem uma origem parecida com o Power Electronics, mas possui um lado mais melódico, uma atmosfera mais densa e o uso de vocais mais distorcidos. Surge com o The Grey Wolves. Este estilo, pela sua proximidade, se confunde com o próprio Power Electronics, fazendo com que as bandas se alinhem tanto neste quanto naquele estilo. Bandas importantes: The Grey Wolves, Genocide Organ, Atrax Morgue, Anenzephalia.
Neofolk: no final dos anos 1980 o industrial vai se encontrar com a música folk e criar um gênero que mantem o experimentalismo e se une com o paganismo europeu (conhecido como Heathenism, sem tradução para o português), com o rock psicodélico e com o folk rock. Dá origem ao Apocalyptic folk (com temáticas mais filosóficas/esotéricas) e ao Dark Folk (mais próximos do gótico). Grupos importantes: Death in June, Sol Invictus, Ataraxia, Forseti, Ordo Rosarius Equilibrio, Spiritual Front, Changes, Current 93, Darkwood, Blood Axis, Fire+Ice, Der Blutharsch, Sonne Hagal.
Martial Industrial/Military Pop: surge como um estilo derivado do neofolk, onde são colocadas referências à música militar. Flerta com o próprio neofolk, com o neoclássico e com a música ambiente. Muitas vezes as bandas lidam com temáticas ligadas ao fascismo. Grupos importantes: H.E.R.R., Death in June, Laibach, Kreuzweg Ost, Von Thronstahl, Puissance, The Day of the Trumpet Calls, Rome, Triarii, Allerseelen, Arditi, Les Joyaux De La Princesse.
Ambient industrial/Dark Ambient: consiste no uso de ruidos e barulhos menos abrasivos, criando uma sonoridade mais ambiente, mais especial. Tem como origem o Coil, formado por John Balance e Peter Christopherson (do Throbbing Gristle). Artistas importantes: Lustmord, Coil, Raison d’etre, Deutsch Nepal, Les Joyaux De La Princesse, Melek-Tha.
Rock/Metal Industrial: São estilos muito próximos (e até mesmo mais complicados de serem definidos como distintos entre si), nascem originalmente do uso de uma parte mais eletrônica junto do rock e/ou metal. Boa parte das bandas carecem do experimentalismo do industrial de verdade, com exceções (no caso, o Nine Inch Nails, o Godflesh e uma das fases do Skinny Puppy). O grande sucesso comercial fez com este estilo se afastasse completamente da proposta do industrial, colocando as bandas no mesmo patamar de bandas de rock e de metal, tendo como elemento apenas alguns ruídos, o uso da bateria eletrônica ou alguns samplers. É efetivamente mais pobre que os outros estilos do post-industrial, chamado por algumas pessoas de “industrial”, devido ao grande sucesso do nome. Bandas importantes: Laibach, Ministry, Rammstein, Bizarra Locomotiva, Godflesh, Nailbomb, KMFDM, Fear Factory, Pigface, Rob Zombie, Marilyn Manson.
Drone doom metal: muitos locais não citam, mas este é o único estilo dentro do metal a verdadeiramente incorporar o industrial com o metal. Nasce da mistura do doom metal com o experimentalismo do industrial, criando um gênero único, de difícil aceitação por parte da própria cena. É muito comum o uso de drones, de ruídos, de manipulações eletrônicas e toda a sorte de experimentos sonoros. Bandas importantes: Sunn O))), Khanate, Boris, Beyond Black Void, Earth.
É claro que esta lista não é definitiva, uma vez que os artistas do industrial e do post-industrial tenham uma tendência ao experimentalismo e ao flerte com outras coisas, como o Ohgr, projeto do Nivek Ogre do Skinny Puppy, que mistura industrial com IDM ou mesmo alguns trabalhos de Raw Black Metal, que vez por outra se assemelham ao noise.
Por isto o legado do industrial é imenso e vasto, com inúmeras variações e possibilidades, tornando o estilo único, mesmo com todo o caos.