Essa semana aconteceu algo que me fez refletir um pouco. Na terça-feira, enquanto trabalhava, conversava com uma das minhas colegas e ela me disse que seu namorado iria no Party.San Metal Open Air. O evento ocorreu entre os dias 08 a 10 de agosto na cidade de Obermehler, aqui na Alemanha.
Perguntei qual a razão dela não ir, pois sei que ela também ouve metal. Ela me disse que não conhecia e/ou gostava das bandas tocariam no festival. Pouco depois ela mostrou o line-up e me perguntou se eu conhecia alguma banda. Passando por bandas como Krisiun, Immolation, Nervochaos e Bloodbath, vejo que o Mgla, banda polonesa de black metal, tocaria.
Eu disse a ela algo como “você sabia que dois membros estavam envolvidos em alguma polêmica NS [abreviação do termo “Nationalsozialismus”, ou, em bom português, nazismo]?”. Recebi como resposta uma negativa, fazendo-a ir ao Google procurar sobre ocorrido para informar ao namorado com a intenção de, talvez, ele avisar mais gente e, com isso, boicotarem o show ou algo do tipo.
Qual não foi a surpresa dela após enviar uma mensagem dizendo “Hey, o Fernando me falou que ouviu que essa banda estava envolvida com algo relacionado ao NSBM e eu encontrei isso (com os links encontrados)” a resposta de que “não se importava, pois estava lá pela música e não por política” e fez uma piada com estrangeiros, que levo normalmente numa boa, ainda mais porque conheço o cara e sei que realmente só foi uma brincadeira.
Quando voltava para casa comecei a pensar e a refletir sobre o assunto e cheguei a uma conclusão. Por qual motivo as pessoas são tolerantes com certas visões e virtudes quando isso afeta algo que elas gostam? Os dois envolvidos no que relatei antes, tanto ela quanto ele, são contra movimentos NS, são contra preconceito e são contra racismo e participaram de algumas manifestações Antifa (grupos de ideologia antifascismo, inspirados em movimentos de extrema-esquerda, que buscam, usando ação direta, coibir atos de inspiração fascista) no passado.
Entretanto, soou engraçado que, no contexto que ele (o namorado) estava inserido naquele momento, aparentemente o fato de dois integrantes de uma das bandas ter algumas pendências com relação a posições que o casal abomina era ignorado de forma consciente.
Comecei a pesquisar coisas sobre outras bandas e artistas envolvidos com todo o tipo de escândalo ou polêmica comprovados, seja por julgamento ou vídeos e fotos. Alguns conhecidos são o do Phil Anselmo e a saudação nazista, claramente dizendo “White Power” em seguida ou a confissão de que a cena de estupro/sexo do filme O Último Tango em Paris foi feita SEM O CONSENTIMENTO da atriz.
Há o caso da empresa de games Quantic Dream, acusada por ex-funcionários por permitir comportamento racista, xenófobo e homofóbico, acusações essas provadas posteriormente. Há também outras denúncias contra músicos, atores, diretores, muitas vezes feitas por atrizes famosas que não teriam motivos para mentir.
Sabe o que percebo em quase todos esses casos? A vida desses agressores não mudou em NADA, pois a legião de fãs não se importou, mesmo com as provas. Muitas pessoas se importaram e boicotaram de alguma forma, mas a massa ignorou os fatos ou estes não as atingiu como atingiu as vítimas.
Peguemos o Phil Anselmo como exemplo. Escutei Pantera a minha adolescência toda, assistia os clipes, pegava CDs emprestados (o guitarrista da minha primeira banda é muito fã da banda). Depois de ver que um dos membros tem envolvimento com algo que, para mim, fere a existência de outros (se pesquisarem sobre neonazismo vão saber que isso prega, mas acredito que nossos leitores já saibam disso) é motivo suficiente para que eu não consuma mais nada que ele faça.
Você deve pensar que sou radical demais e a resposta é SIM, sou mesmo. Como ser humano, tento ser a melhor pessoa que posso ser. Eu sou contra a violência em geral, principalmente contra mulheres e crianças, qualquer forma de racismo, homofobia, xenofobia e bairrismo. Eu nunca seria amigo de alguém que defendesse e praticasse qualquer coisa do tipo.
Se descubro que algum amigo meu é ou se enquadra em algumas dessas coisas, tento conversar e, se não adiantar, corto o vínculo.
Sou a pessoa que liga para polícia se ouve uma discussão muito acalorada no vizinho e as pessoas mais próximas a mim dizem que eu exagero, pois esse tipo de discussão é normal. Pode ser, mas a gente nunca sabe se algo “normal” pode mudar e se tornar perigoso. Portanto, partindo de que eu não teria nenhum amigo (ou pessoa próxima) que seja racista, fascista, xenófobo, homofóbico, etc., por qual motivo eu não faria o mesmo com quem nem conheço pessoalmente?
Cortei relacionamentos com uma tia quando descobri que ela agredia minha prima quando criança, humilhando-a e causando terror psicológico. Se o resto da minha família finge que nada acontece e tolera, se o resto da minha família é conivente, isso não é problema meu.
Isto se aplica aos meus ídolos. Não serei conivente com quem tem práticas que causam dano a existência física e mental de outro pessoa. Não vou apoiar quem agride a mulher ou qualquer outra pessoa, não vou dar o meu dinheiro em merchandising para alguém com ideologias fascistas e muito menos comparecerei em filmes ou shows cujos participantes são comprovadamente estupradores, racistas, xenófobos e similares. Sei que estou me repetindo aqui, mas eu quero deixar esse meu ponto claro.
Na tentativa de compreender o motivo das pessoas ignorarem esses problemas, dei uma olhada em um fórum online para saber a opinião delas. Li tópicos criados de pessoas perguntando coisas similares, tópicos como “a banda que eu escuto escreveu uma letra homofóbica, gostaria de saber a opinião de vocês sobre o assunto, pois eu definitivamente pararei de escutar eles” e eu me deparei com respostas como “eu não me importo o que eles fazem na vida privada deles” ou “arte transcende ideologias”.
Com isso entramos em algo que refleti e pensei muito. Não, a arte não transcende ideologias. Como alguém formado em artes plásticas e ainda estudando sobre arte e correlatos, para mim, ela é, muitas vezes, atemporal, mas ainda é uma invenção do homem e, como todas as invenções, falha.
Não consigo separar pessoal de profissional, pois você não é duas pessoas diferentes. Se você tem um problema em casa, não entra no trabalho e esse problema simplesmente desaparece. Se volta estressado para casa, o estresse não desaparece quando entra em sua casa. Tudo o que você faz, pensa reflete no ambiente e nas pessoas ao seu redor. Não me importa se a banda não tem letras sobre nazismo, se um dos integrantes é e ele continuará sendo e isso refletirá em tudo que ele faz.
A banda pode nem ter letras sobre política, mas esse músico que flerta com o nazismo, ele trata todo mundo bem? Caso ele toque em outro país, ele trata as pessoas bem (existem relatos de roadies e músicos tratando empregados de casas de show extremamente mal e de forma racista). Caso ele seja a pessoa mais gente boa do mundo, isso não muda o fato de que uma parte dele é provavelmente contra judeus, negros, asiáticos e qualquer outra etnia que ele julgue “não pura”.
Vocês não veem problema em dar dinheiro ou deixar famosa uma pessoa assim?Eu vejo. Eu vejo, pois alguém assim é ouvido por pessoas que não tem o mesmo acesso à informação, muitas vezes cansadas da vida que levam e procuram alguém para culpar. Pensam que “se meu ídolo gosta/faz isso, farei também” e muitos fazem. Quantos relatos existem de pessoas dizerem “eu fiz isso porque vi em tal jogo, eu fiz isso por causa do ator que gosto”.
Ontem no YouTube me deparei com um vídeo no canal dos Irmãos Piologo e ao final eles “ensinaram”, nas palavras dele, “como pegar tetas”. A tal da tática consiste, basicamente, em embebedar a mulher para que ela fique mais “fácil”. Fiquei mais assustado com os comentários do que com o vídeo, pois as pessoas não se indignaram, dizendo pérolas como “logo as feministas vão vir falar merda”, “façam um vídeo com dicas amorosas”.
Será que ninguém viu nenhum problema? Definitivamente isso não é e não deveria ser levado como brincadeira, sobretudo numa realidade a qual mulheres ainda são as maiores vítimas de violência sexual.
Não, essas coisas não são brincadeira e dois adultos com mais de dois milhões de inscritos no canal deveriam saber que qualquer coisa dita por eles precisa ser bem pensada e planejada, pois algumas pessoas realmente farão isso.
Essas pessoas geram influência em outras pessoas, pessoas usam roupas que os famosos usam, falam as gírias que eles falam, querem as coisas que eles tem, ESPECIALMENTE crianças e adolescentes (e muitos adultos).
Já não basta o Brasil eleger o pior presidente possível e nem preciso dizer aqui os motivos de não gostar dele como político e ser humano e o mundo fica cada vez mais permissivo, apoiando bandas e produtoras que apoiam ideologias que desumanizam o próximo, seja comprando o CD, a camiseta, o jogo, seja indo no cinema, ajudando em Crowdfunding/Patreon, estamos dando espaço e voz, normatizando aquilo que deveria ser visto como repulsivo.
Já ouvi de um amigo “mas todo mundo já foi racista um dia”. Não preciso dizer o quão errada essa frase soa. Não, todo mundo não foi racista um dia. Nenhuma criança é racista, ela é ensinada a ser, a odiar e não gostar de outras crianças que não se parecem com ela, que vem de outros lugares, que não gostam das mesmas coisas que ela. E quem ensina? Os pais, as pessoas próximas, a própria mídia.
Não adianta postar no Facebook que é contra todo esse estado opressivo de coisas, se quando pode-se fazer algo relevante, vocês se calem perante artistas estupradores, racistas, nazistas. Perante pessoas que preferem ter um filho morto a um gay. Ou ainda curar a homossexualidade utilizando-se de meios violentos.
Vocês se omitem diante da violência cotidiana causada pelos seus amigos, familiares, colegas de trabalho. Ou nem falam nada quando chefes abusam de sua posição de poder. Ou aquele seu brother que trai a namorada ou a sua amiga que trai o namorado.
Precisamos mudar urgentemente, perceber que a arte e amizade não estão acima do ser humano ou repetiremos os mesmos erros de nosso passado não muito distante. Perderemos as conquistas das mulheres, dos LGBT+, dos negros e de outras minorias, pois ficaremos acovardados diante de um mundo o qual não poderei nem dizer à minha filha que ela pode sair em segurança ou usar a roupa que quiser.
Arte, mais do que nunca, precisa contestar os valores morais quando estes são injustos, mas nunca deve se colocar acima daqueles que protegem a vida e a dignidade.