A música noise, como parte do gênero industrial, se caracteriza pelo uso constante dos ruídos, numa contradição à cultura massificada da música popular, como o rock e o pop. É uma linguagem única, desordenada, caótica e excêntrica, é ao mesmo tempo o limite entre a música e a não-música. E, com os japoneses, o gênero ganhou um estado ainda mais contraventor, originando o japanoise.
Antes, precisa-se entender qual a natureza do noise e suas concepções como arte. Fazer música com barulhos tem início com o texto “A Arte dos Ruídos” de Luigi Russolo, em 1913. Sendo parte do movimento futurista, o italiano procurava no ruído uma forma de expressão com todas as qualidades musicais, incluindo a possibilidade de combinação e de recriação. Residia nele o discurso de que todo som do cotidiano será a parte formadora da música do homem moderno, ressaltando, deste modo, a ciência e a tecnologia.
Da música ao noise
Pode-se atribuir o começo da música noise em terras nipônicas nos anos 80, com os projetos do Merzbow, Incapacitants, Hanatarash, Hijokaidan, Boredoms e outros artistas. Do contrário ao que aconteceu no Ocidente, noise não era somente para se opor ao processo de mercantilização da música: era a forma de unir os dois extremos da cultura japonesa: alta tecnologia e tradicionalismo. O país consegue conviver com o lado inovador e vanguardista de suas invenções tecnológicas sem abrir mão das tradições ancestrais, tornando-o único. Contudo, é nele também que surge uma necessidade de fundir estas duas tendências e recriar uma linguagem artística nova.
Porém, neste período, a música experimental japonesa não tem muito espaço ou adeptos dentro do próprio país. Todos estes artistas eram pertencentes a uma pequena cena local, ainda que, dentro dos nossos padrões, uma cena pequena no Japão é maior que a nossa cena mainstream em muitos casos. Somente nos anos 90, com uma imagem de um “Japão legal” é que o noise ficou conhecido. Era uma época em que os animes e a música japonesa tomaram o mundo. As pessoas queriam ver os desenhos de olhos grandes, os artistas coloridos com suas músicas cantadas no idioma local.
Este interesse maior pela produção cultural japonesa fez com que as pessoas tomassem conhecimento do noise. Assim como o rock e o pop ganharam os nomes de j-rock e j-pop, o japanoise estava cunhado. Os EUA foram os primeiros a demonstrar interesse pelo cenário underground na terra do sol nascente, então alguns artistas começaram a ir para lá. Ao retornarem, atraiam o interesse dos próprios japoneses, numa espécie de importação reversa.
O que estas pessoas, comprometidas com a música experimental, traziam? Identidade. Com a popularização dos artistas de j-rock e j-pop, estes perderam sua identidade e começaram a ficar mais parecidos com artistas ocidentais. Isto decorria do uso de frases ou mesmo discos inteiramente gravados em língua inglesa, uma musicalidade mais palatável, sofrendo um processo de “ocidentalização”, ficando apenas o visual levemente andrógino e os vocais agudos como “marcas” japonesas.
Ao entrar no mercado ocidental, o noise quebrou esta hegemonia da música pop japonesa, empobrecida e vazia. Começava ali também o aperfeiçoamento dos artistas mais experimentais, que flertavam com o rock, o grindcore e o powerviolence. Chegavam na América artistas como Boredoms, Acid Mothers Temple, Ground Zero, entre outros, através de canais de distribuição alternativos. Eram projetos que também vieram na cola de grupos de hard rock e punk da cidade de Osaka. Esta cidade, por ser afastada de grandes centros como Tóquio, não se contaminava com os excessos e a cultura comercial, fazendo de seus cidadãos pessoas adeptas da agressividade e das formas não convencionais de lazer.
No começo dos anos 90, as rádios americanas independentes começaram a divulgar a música ruidosa de projetos como Merbow, Masonna, K.K. Null etc. É neste momento que a ideia de um noise japonês tomava conta de uma cena underground notoriamente orientada para o rock. Fanzines como Ongaku Otaku ajudaram a mapear os estereótipos do underground japonês, culminando com turnês destes mesmos grupos em território americano. Neste momento o Ocidente tomaria contato com o lado performático do gênero, com toda a sua rispidez e agressividade jamais experimentados antes.
Embora já existisse uma cena estabelecida para a música industrial, não era clara a definição de noise para os americanos. Para eles, Noise music refere-se a toda uma leva de música experimental, incluindo o post-punk, Noise passou a distinguir toda e qualquer música barulhenta demais para ser absorvida pelo mercado fonográfico e a noisy music, referindo-se a grupos de rock mais barulhentos, como o rock alternativo, passando depois a integrar alguns grupos de Noise Music. E o noise japonês, por não se encaixar nestas nomenclaturas, entrou no país com gosto de novidade.
É certo afirmar que o precursor de todo este movimento foi o grupo Hijokaidan. Fundado em 1979, era um grupo voltado a apresentações anárquicas, envolvendo destruição de locais, equipamentos, além do lixo e da sucata jogados contra o público. Com o tempo, passou a assumir uma postura mais noise, dando também uma sonoridade bastante característica, além das performances escatológicas. Contudo, no Ocidente, o Merzbow, formado por Masami Akita na mesma época do Hijokaidan, ficou mais conhecido, sobretudo pela grande quantidade de álbuns lançados (até o momento, ele possui 272 discos de estúdio, 70 ao vivo, 5 compilações, 30 EPs, 13 trilhas sonoras, 2 discos de tributo e covers, 3 discos de remixes, 30 box-sets, 226 faixas em diferentes compilações, 38 splits, além da participação em 108 discos) e pelos trabalhos colaborativos com grupos ocidentais, tais como Bastard Noise, Smegma, Black Leather Jesus, Sutcliffe Jügend e também colaborou remixando músicas para o Ulver, Meat Beat Manifesto, Agoraphobic Nosebleed, Melvins e Samsas Traum, somente para citar alguns nomes.
O que é o japanoise então?
Definir o japanoise é algo tão complexo como definir a natureza da música industrial. Por isto precisamos tomar bastante cuidado, uma vez que, estruturalmente, ela é bem próxima do industrial “convencional”.
O noise japonês é uma variação da sonoridade extrema praticada por grupos como Throbbing Gristle e Whitehouse. Os grupos têm por tendência soarem mais melódicos e com uma sonoridade mais agressiva, sobretudo a cena da cidade de Kansai, onde muitos dos primeiros grupos começaram a atuar. E é em Osaka que os espetáculos voltados ao gênero começaram e ganharam força nos anos 90, com a volta dos grupos que fizeram turnês no exterior.
Por isto, pode-se dizer que, num primeiro plano, Japanoise é o barulho que leva toda a filosofia da agressividade e é totalmente autoral, independente de quem o faça, sempre soará como parte daquele universo e daquele grupo. Por esta razão que é possível notar que, independente de qual grupo que se tome contato, a brutalidade é uma marca constante, que por estas bandas recebe a alcunha de Harsh Noise.
A performance é o segundo lado do gênero. É ela que conecta o público à música, numa comunhão com o experimental e com a degradação do ser humano. Em boa parte das performances, o uso de escatologias (como vomitar e urinar durante a apresentação), a quebra de equipamentos durante as apresentações e até mesmo o risco de sofrer algum ferimento sério durante as performances trazem uma experiência única, diferente de simplesmente assistir de forma passiva ao espetáculo. É sentir ali toda a essência de acompanhar a transformação da apresentação num momento catártico e inovador.
Com a circulação constante dos materiais entre os fãs e as bandas, numa relação ambígua de dominação e renovação, o estilo agrega para si sempre inovações, advindas do rock, do grindcore, da música ambiente, da música eletrônica, a colagem musical e o remix, possibilitando novas formas de interação e de resposta entre o músico e seu público, algo impensável dentro da música convencional. É uma luta constante contra os clichês dados pelo pop e pelo rock Ocidentais na música popular japonesa, preocupados em constantemente agradar ao mercado exterior.
É também uma música onde as experiências do ouvinte sempre serão únicas, sem o engessamento dado pelo convencional. Cada pessoa irá se conectar e interpretar da sua maneira aquilo que recebe, sem depender de conhecimentos culturais, de espaço onde se ouve ou mesmo de gosto pessoal. Exige-se, portanto, mais sensibilidade e menos intelectualismo para compreender a natureza do japanoise, tornando-o uma forma genuinamente inovadora de se fazer música e que ainda encontra fôlego para se renovar a todo momento.