Eu sempre sou muito reticente sobre escrever alguma coisa contra o que se convenciona como “movimentos sociais” ou, como diria aquele seu amigo reacionário, aqueles “esquerdistas abortistas fumadores de maconha que querem implementar o comunismo no Brasil”. Até porque o Groundcast não é para esse tipo de gente com pensamento tanto do lado mais “conservador” (colocado com muitas aspas aqui) como do lado mais “progressista” (colocado com mais aspas ainda). Entretanto, essa semana aconteceu algo que me causou um bocado de espanto, um caso essa semana que expos o quanto a tal cena alternativa tem se construído num ideal tão pobre e tão romantizado que eleva o artista à condição de criatura romântica que deve ter sua conduta sempre nobre e correta, tal qual a cena pop mainstream.
Desde que escrevi sobre a Mallu Magalhães que noto certo grau de truísmo por parte da chamada “galerinha do lacre”. Vamos ser bem sinceros: ninguém gosta de pessoas que são abusadoras, sexistas, que xingam mulheres e tal. Nem mesmo quem é abusador, sexista ou xinga mulheres. Mesmo porque essas pessoas não vão enxergar que seus atos estão errados ou, no máximo, são justificados porque outras pessoas de seu grupo social aceitam isso como moralmente correto. Tem um estudo da Yara Mekawi sobre empatia e desumanização que explica isso muito bem ao correlacionar o fato de que alguns grupos sociais são mais protegidos pelo medo que os potenciais agressores têm da reação social do que pelo fato de sentirem alguma empatia pela pessoa. Há mais estudos sobre isso, alguns inclusive correlacionando efeitos de como as mulheres são maltratadas, mas que infelizmente são pagos, então vou ficar devendo para vocês.
Dentro desse meio que o mercado descobriu que o ativismo social vende muito. O El Coyote tem um texto muito legal sobre o assunto, explicando o quanto as pessoas engajadas com causas como feminismo, LGBT, minorias étnicas, entre outras, começaram a fazer parte do mercado consumidor. Esse é um fenômeno estritamente das grandes empresas, das grandes marcas, como a Disney e a Netflix, que sabem muito bem como lucrar em cima disso. Entretanto, isso também respinga (diria que tem inundado mais do que nunca) o pessoal mais alternativo, o que ficou bem evidente no caso mais recente envolvendo Felipe Zancanaro, guitarrista do grupo Apanhador Só.
Ele era casado com a apresentadora Clara Corleone, que decidiu jogar a merda no ventilador após a banda lançar a música “Linda, louca e livre”, cuja letra possui aquele discurso pró-feminista feito por uma banda de machos-héteros-semi-desconstruídos e apontar que era muito hipócrita defender a liberdade da mulher em relacionamentos enquanto um dos integrantes da banda traia e abusava dela enquanto se relacionavam. A crítica da mulher nem é para a banda e sim para o guitarrista, deixando muito claro que o problema não é e nunca foi o Apanhador só, que a ideia era mais um desabafo e também um tapão na cara contra todo esse discurso de “desconstruidão da porra” que rola.
O que se seguiu é digno de pena. Um monte de gente, a maioria mulheres, começou a atacar a banda, chamando-a de apoiadora de machista, com todos aqueles clichês horrorosos possíveis. Não as condeno, se eu fosse mulher talvez fizesse a mesma coisa. O próprio Felipe pediu desculpas e disse que ele ainda é fruto do machismo da sociedade. O que é muito cômodo depois que tudo está desabando, além de bastante conveniente. Não acredito que esteja realmente arrependido de ter transado com tanta gente só porque bateu aquele peso na consciência ou mesmo porque se colocou no lugar da Clara. A reação social forçou a pelo menos admitir um erro e a uma retratação bem meia boca, mas que talvez possa servir de lição para o moçoilo.
O meu ponto, contudo, é outro. Por causa dessa repercussão, a banda resolveu dar um tempo nas atividades, em virtude de todas essas reclamações de machismo, cancelando shows com medo das represálias. O que mostra como o público desse tipo de banda é extremamente sensível ou a banda é formada por gente muito bunda mole. Isso é o resultado de uma tendência que existe a grupos se formarem em cima de uma militância que exige do mundo uma preocupação com as mazelas que sempre estiveram aí. Não que estejam errados nisso. O problema é que esse tipo de exigência acabou criando um novo produto no mercado: o homem desconstruído.
O homem desconstruído, em tese, é aquele que, durante o seu processo de amadurecimento, se desfaz daquele machismo com o qual se vê inserido socialmente (partindo de uma premissa que todos os homens são machistas por natureza) e, por isso, precisa aprender que existe todo um sistema opressivo que coloca homens e mulheres em posições sociais muito desiguais. A ideia da desconstrução foi proposta inicialmente por Jacques Derrida para contrapor conceitos filosóficos e depois apropriada pelos movimentos sociais. O que também é algo muito complicado porque a própria ideia de desconstrução é criticada por gente como o Sokai, o Habermas e o Saerle, sobretudo no que tange a falta de logicidade e método ou mesmo o não-criticismo do que se propõe a desmontar um modelo já existente.
Para piorar as coisas, não existe nada sobre o homem desconstruído que não esteja escrito em português e que não seja no Brasil, o que me leva a concluir que esse produto mercadológico é exclusivamente brasileiro. O que faz muito sentido visto que, segundo artigo do site Compromisso e Atitude, 89% das vítimas de violência sexual no Brasil são mulheres, para 70% da população, é a mulher que mais sofre violência doméstica e todas as mulheres têm consciência da existência da Lei Maria da Penha como amparo legal a elas. Nesse cenário, é bem compreensível que elas queiram justamente um modelo de homem que não seja somente sensível e romântico, mas que também lute contra toda essa opressão, que a respeite como ser humano, que demonstre apreciar a sua liberdade e, se for bonito, melhor ainda.
Com isso passou-se a produzir mais artistas que usam desse expediente para vender e o Apanhador Só foi só mais um deles. Essa ideia de “homem desconstruído” é um grande mito que se criou para poder vender um modelo que, quando posto à prova no mundo real, não se concretiza e as pessoas se chocam quando descobrem que, no fundo, todo mundo pode ser um grande cuzão sem nenhum tipo de barreira. Podem ser desde pessoas que xingam muito mulheres até mesmo casos em que rolam altas porradas e violências sexuais indescritíveis, da mesma maneira que a pessoa do dia a dia, que vez por outra, aparece nos jornais sensacionalistas da vida. Some a isso outros grupos socialmente oprimidos, como LGBT, negros etc e você terá a tal da “geração lacre”, como eu li em algum lugar no Facebook, formada por pessoas que, dentro de sua bolha social, veem nos artistas um modelo perfeito de pessoas, éticas, morais e sem nenhum defeito de caráter.
Todavia, não existe problema em escrotizar uma banda como foi feito com o Apanhador Só, ainda que pelos motivos errados. O problema real consiste quando, instigados por esse tipo de comportamento, alguém resolve voltar com aquela velha prática conservadora de apontar. Neste texto aqui, que tinha o nome de “Bandas que você deveria deixar de apoiar” até o dia 18 de agosto e, na data de publicação dessa postagem, alterado para “Bandas brasileiras com denúncias de atitudes machistas”, sem nenhum tipo de aviso ou mea culpa pela alteração da chamada espúria. O texto, à época da publicação, tinha um teor bastante moralista do tipo “vamos parar de apoiar esse bando de banda machista”, o que parece um bocado estranho pois duvida muito da inteligência das pessoas que ouvem esses grupos de poder escolher entre continuar gostando e ter uma atitude crítica ou deixar de gostar por serem uns completos babacas. Também coloca a ideia que só existirá apoio a todo mundo que for ético, moral e do bem, tal qual empresas que têm compromissos sociais.
Isso torna artistas produtos que precisam atender às demandas dessa galerinha, no lugar de serem pessoas que, dentro de suas idiossincrasias, possam produzir arte e ter alguma coisa a dizer. Gosto muito do Boyd Rice, é um dos caras mais incríveis da música industrial e me arrisco a dizer que muito do que o industrial é hoje se deve a ele. Mas, ao mesmo tempo, é um sujeito que manda feministas chuparem a r*l* dele e que fica naquele limite entre pessoa e personagem. Possivelmente hoje seria encarnado naquela listinha com uma série de prints, talvez teria um post dedicado. Ao mesmo tempo que é o cara que condena a tolerância com extremismos e, como ele mesmo diz “não há desculpas para ser um babaca / e vivemos na era das desculpas / na era dos babacas”. Nem por isso compro os discursos preconceituosos que vez por outra coloca. Assim como muitos outros artistas que também são pessoas ruins, mas com obras magníficas.
Não digo isso com aquele velho clichê (embora válido) de separar artista e obra, porque seria um assunto para um artigo separado. Mas é a questão que esse pessoal do underground muitas vezes acaba sendo consumidor de modelos de bandas / pessoas / ideais do que da obra produzida por esses artistas, seguindo um modelo muito parecido com o utilizado pela indústria da cultura de massa. O Apanhador Só mesmo é uma banda entre o mediano e o execrável. Daí retomo a pergunta inicial: qual artista você quer comprar? Aquele que atende ao seu desejo de um mundo ideal ou que tem alguma coisa a te dizer, ainda que você não goste?
Fica aberta a reflexão.
Me faz lembrar a cruzada do Spotify, contra bandas “nazistas”. Atitude travestida de respeitabilidade, forjada sob um viés de segundas intenções mercadológicas (principalmente acerca de grupos inclusos nisto sem qualquer critério).
O link anexado (Bandas que você deveria deixar de apoiar), denota bastante desse despreparo, tanto quanto a ausência de qualquer analise (inter)pessoal.
Então, por mais que eu até apoie uma atitude como essa de excluir banda nazi, eu vejo essa coisa do Spotify e similares (o Deezer tb fez isso sem fazer nenhum alarde e a Apple Music tb), o critério é meio a moda caralha. Tem uma lista de um site colocando umas bandas que nem nazi são como se fossem nazi. E o Spotify levando isso a sério, o que é muito triste.