Fui estuprada quando tinha 15 anos. Esta foi a minha primeira experiência sexual. Para lidar com isto, eu tentava não pensar no que estava acontecendo. Não era proposital, minha mente não queria estar no meu corpo, enquanto meu corpo fazia coisas que meu espírito não estava preparado. Anos depois eu não conseguia ter relações sexuais com ninguém sem estar totalmente fora de mim.
Estou te contando porque este fato me machuca demais e, como qualquer ferida, precisa de remédio para curar.
Quando o Metallica lançou o clipe da música “One”, quatro meses depois de eu ter sido estuprada, insisti e não podia continuar.
“Now that the war is through with me/I’m waking up, I cannot see/That there’s not much left to me/Nothing is real, but pain now”. (Agora que esta Guerra acabou comigo / Estou acordando e não consigo enxergar / Não restou muito para mim / Nada é real, exceto a dor que sinto agora)
James Hetfield se inspirou numa vítima de uma mina terrestre, que aparece em um romance escrito em 1930 (NOTA DO TRADUTOR: O livro em questão é o Johnny Vai à Guerra, originalmente chamado de Johnny Got His Gun, escrito por Dalton Trumbo como forma de criticar a campanha de incentivo aos jovens para alistamento nas Forças Armadas norte-americanas). Mas, para mim, ele sabia que era mesma sensação de uma garota que fora abusada sexualmente. Estava claro em cada verso. Cantando com melancolia e raiva, Hetfield estava ali comigo, quando eu precisava desesperadamente saber que não estava sozinha.
Não tinha ideia de porque a música me afetava tão profundamente. Só sabia que precisava de mais. Mais guitarras, mais baixo, mais bumbo-duplo batendo num piscar de olhos, mais raiva, mais palavras tristes. Já estive em shows como os do Guns N ‘Roses e de outras bandas de metal mais mainstream, mas depois de ouvir “One” que eu caí em mim mesma. (N.T.: No texto original existe uma menção ao caso de Jéssica, ocorrido em 1987. Ela caíra num poço e teve seu resgate noticiado pela CNN. Na ocasião ela estava no Texas com sua tia e as circunstâncias do acidente permanecem um mistério até hoje. A autora usa como analogia para explicar que, quando ela tentava ser “puxada” para fora do estado de melancolia, ela reagia, não querendo sair e encarar a realidade)
Ironicamente, depois de um tempo, a música não me era mais útil. Eu tinha todo o direito de ouvi-la em casa ou nos clubes. Mas havia muitos sinais me falando exatamente o contrário. Naquele tempo o metal era voltado aos rapazes, desde a temática das músicas aos mosh pits. Nas letras, as mulheres eram machucadas, violentadas ou ignoradas, raramente respeitadas. Nas apresentações não era diferente.
Nos anos de 1980, quando você era uma mulher dentro da cena do metal, tinha apenas duas opções. Caso quisesse ser uma guitarrista – destacando-se no palco ou na multidão – era como um uniforme usar uma minissaia de couro apertada, um sutiã ou bustiê cravejado e spray de cabelo suficiente para acender uma fogueira. Se queria apenas curtir o som, tinha de se vestir como os rapazes. A última coisa que eu queria era ser sexualizada, então escolhi a segunda opção. Escondia-me em um jeans preto, camisetas de bandas, tênis Converse de cano alto e bonés de beisebol virados para trás.
Como qualquer subcultura, o mundo do heavy metal tem regras. Há um código de vestimenta: violá-lo era se colocar em risco. A sua escolha de roupa era para te incluir no grupo. Milhões de crianças desajustadas fizeram do gênero o seu lar e, com isto, um sentimento de pertencimento a uma família, a uma tribo. Pelo menos, é assim que funciona quando você tem um cromossomo Y.
Queria muito me juntar a esta tribo headbanger. Entretanto, por conta do que escolhi vestir, os rapazes me ignoravam. E eu era tímida, o que não ajudava muito. Na minha escola, metalheads do sexo masculinos pareciam me aceitar. E nos shows? Esqueça. Enquanto os caras estavam mais ligados nos riffs da banda, eu poderia muito bem ter sido esmagada no chão.
Poderíamos ter descoberto muitas coisas em comum se tivéssemos conversado. Os adultos diziam que a música agressiva deixava as crianças agitadas, mas para mim era justamente o contrário, pois me tranquilizava. Li dezenas de revistas especializadas e assisti muitas horas de Headbangers Ball (N.T.: É um extinto programa de metal muito famoso nos EUA) e ninguém falava nada sobre os efeitos da música nas pessoas, então me senti como se fosse um tipo de monstro. Esta sensação continuou até eu ler a obra de Jeffrey Jensen Arnett, com meus 20 e poucos anos, e notei que estávamos todos ouvindo heavy metal pela mesma razão. Entenda que, em uma cena dominada por homens, ninguém (incluindo as mulheres) irá se preocupar em como a música faz você realmente se sentir.
Com o passar do tempo, o gênero foi se modificando. Bandas operísticas e folks colocaram as mulheres à frente do palco. Cantoras como Angela Gossow, Floyd Stevie e Otep Shamaya provaram que podem berrar melhor que eles – e agitar sem ficar se expondo. Bandas mais mainstream, como o Tool e o Lacuna Coil, oferecem uma música mais emocional sem emascular o seu público.
Atualmente em muitos shows de metal temos alguma coisa que se aproxima da paridade entre os gêneros. Muitas mulheres ainda adotam o uniforme de jeans mais camiseta, mas outras, finalmente, sentem-se livre para vestirem do jeito que quiserem, sem o risco de serem ignoradas. Claro, há limites – o metal ainda é uma subcultura com regras bastante rígidas, mas os seus limites estão se expandindo.
Isto não quer dizer que o sexismo tenha terminado. O crescimento da participação feminina em bandas de metal, infelizmente, tem dado origem a ideias como a turnê das “Mulheres mais Gostosas do Heavy Metal”, reforçando o estereótipo de que elas só estão no palco para serem desejadas. E não apenas no palco – há homens que dirão que se você se sentar sobre os ombros de alguém para poder ver o concerto, é melhor mostrar os seus seios. Se quiser mergulhar na multidão, é melhor que esteja como a jornalista Lara Logan na Praça Tahrir, no Afeganistão. E quando uma mulher mostra o seu amor pelo Slayer com uma dança do ventre para a música “Black Magic”, é justo você: (a) rir dela ou (b) falar como ela é gostosa, certo?
Ou seja, ainda não deixou de existir o preconceito de gênero na música ou nos vídeos. O clipe do Behemoth “Ov fire and the Void” sustenta um dos mais antigos símbolos femininos: a mulher como demônio sensual, fértil, pronto para o sexo.
Não há soluções rápidas para a misoginia, sendo esta uma constante dentro da cena metal desde que Ozzy cantou “Evil Woman”. Em parte é porque o este sexismo dentro da cena espelha o mesmo sexismo da sociedade. Para superar isso, temos de conscientemente transcender milhares de anos de programação cultural e de DNA.
Metalheads amam encontrar maneiras de se rebelar contra a sociedade. Podemos usar isto a nosso favor. Músicos e fãs precisam deixar para trás o famoso olhar masculino. Parar de assumir que todo ouvinte do gênero é um homem heterossexual e, se você fizer isto, já é meio caminho andado.
Os rapazes podem fazer a sua parte, abrindo espaço para as mulheres. Para começar, superarem a ideia de que as mulheres “não gostam de metal”. Seja amigável em shows, mas não fiquem flertando com elas. Fale sobre uma música que você gosta, ou a última vez que viu a banda ao vivo. Pergunte sobre suas experiências com a música e shows. Em outras palavras, faça com que elas se sintam bem-vindas e não como um pedaço de carne em uma bandeja, pronta para ser servida. Nada de ficar passando a mão nelas. Caso veja seus colegas maltratando as mulheres na plateia, diga alguma coisa.
Mulheres também têm suas responsabilidades. Mostrem-se, agitem e falem do seu amor pelo estilo. Façam do seu jeito e não deixem ninguém te colocar para baixo. Falem com os rapazes sobre a música nos concertos. Fiquem de olho naquelas que não estão sendo respeitadas, tomem uma atitude ou peçam ajuda quando isso acontecer. Se envolvam. Tirem fotos ou façam um blog. Façam muito barulho sobre as bandas que escrevem música para todo mundo. Façam barulho sobre as bandas que não o fazem.
Leitores: Quais suas experiências de sexismo na cena metal? Que letras, imagens ou comportamentos te mantêm afastadas? E o que pode ser feito para tornar a cena mais acolhedora, especialmente para as fãs do sexo feminino? O que, senão tudo, precisa mudar?
[box type=”info”] Este texto originalmente aparece no blog “Invisible Oranges“, escrito por Beth Winegarner, jornalista, autora e blogueira, com muitos textos sobre o feminismo e a cena metal.hyperlink unique: http://www.invisibleoranges.com/2011/05/are-you-speaking-to-me-respecting-girls-in-metal/
Tradução: Fabio Melo[/box]