O que define a música industrial

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A definição de música industrial é complicada por ser um gênero muito ambíguo, apresentando elementos como sintetizadores, ruído, colagem de sons, entre outros, além de trazer uma estética contraditória, incômoda e difícil de ser assimilada. Inclusive este é o quarto texto sobre o assunto, que constantemente preciso reescrever para conseguir trazer mais informações, conforme as encontro. Pode comparar com este daqui e ver o que mudou.

Emergiu em meados da década de 1970, em Londres, com a criação da gravadora Industrial Records, abrangendo composições voltadas ao barulho e à música eletrônica experimental, com uma postura antiburguesa de rejeição à cultura mainstream.

Cresceu em popularidade nas décadas seguintes e se diversificou, com vários subgêneros emergindo adicionando elementos. Não por acaso muita gente considera Rammstein como uma banda de industrial, ao passo que para muitos artistas eletrônicos europeus, qualquer banda eletrônica underground com algo mais “pesado” é chamada por esse mesmo rótulo.

Para fins didáticos, este texto tem muitos vídeos com canções e performances referentes ao tema. Recomendo que as escute conforme avança na leitura.

O contexto contracultural da música industrial

Antes de entrarmos nos detalhes sobre o que é música industrial, precisamos entender o gênero em seu contexto contracultural 1 e a sua rejeição à classe dominante e às convenções sociais, com o propósito de desafiar as normas e os valores culturais vigentes.

Surgida como parte do movimento post-punk, é uma reação ao ambiente político, social e econômico da década de 1970, marcado por uma recessão econômica em alguns países europeus, governos conservadores com políticas de austeridade que colocavam as classes trabalhadoras em condições miseráveis e os impactos da disputa do Ocidente contra a União Soviética.

Os músicos industriais desafiavam as normas de mercado, as hierarquias sociais e o consumismo presentes que tornavam a sociedade conformista e complacente. Tinham como propósito apresentar composições que refletissem essa insatisfação com o status quo e proporcionassem um espaço alternativo para a autoexpressão e a resistência.

O desenvolvimento aconteceu simultaneamente a outros movimentos 2 que contestavam os valores familiares, a norma sobre a sexualidade (que ficou conhecido como a Revolução Sexual), os movimentos feministas e a luta antirracista. Tudo isso era lutar contra o mercado, contra os males do capitalismo e dos governos que limitavam as liberdades individuais.

Contudo, o mercado consegue se adaptar e transformar muitos desses movimentos em mercadorias. Pode-se perceber essa tendência mercadológica quando o punk se torna um produto estético, assim como as subculturas dos metaleiros e dos góticos. Por sua vez, resiste à assimilação e à comercialização, conservando uma postura contracultural.

Pessoas como Genesis P-Orridge (e todos os membros do Throbbing Gristle) não são heterossexuais 3  e suas apresentações frequentemente incluíam imagens, letras ou ações provocativas e controversas, iniciadas anteriormente na COUM Transmissions, projeto coletivo que antecedeu à banda.

Suas influências vêm do futurismo italiano, que abraçava a tecnologia, a velocidade e a era da máquina, bem como do dadaísmo, que rejeitava a lógica e a razão em favor do caos e da irracionalidade. Os movimentos de vanguarda franceses, como o Musique Concrete, também tiveram um papel importante na formação da natureza estética e experimental da música industrial.

Os futuristas

Na Itália, o Futurismo4, movimento de vanguarda surgido no início do século XX, influenciou consideravelmente, pois enfatizava temas ligados ao futuro, como a velocidade, a tecnologia, a juventude e a violência. Glorificava também objetos como carros, aviões e as cidades industriais, rejeitando expressões artísticas tradicionais.

Luigi Russolo, compositor e teórico musical italiano, é o responsável pela criação da primeira música futurista. Em seu manifesto “A Arte dos Ruídos”, exigia a expansão dos recursos sonoros por parte dos músicos de modo a incluir todos os sons existentes no ambiente urbano. Deveria incorporar o barulho produzido por máquinas e carros, pois são o reflexo de uma sociedade moderna e da vida ligada ao trabalho e sugere que a realidade seja transposta para a melodia. Com essa finalidade, construiu o Intonarumori5  ou “entoador de ruídos”, instrumento mecânico projetados para criar um som cacofônico que evocaria a natureza caótica e dinâmica da modernidade. Ele era totalmente acústico, não eletrônico, com caixas que criavam diferentes tipos de obras sonoras.

Musique Concrète

A Musique Concrète, cuja paternidade costuma ser atribuída a Pierre Schaeffer na década de 1940, é um procedimento de composição, de natureza eletromecânica, que se afasta dos métodos tradicionais. Consiste na manipulação e no reordenamento de sons gravados por meio de uma fita cassete e outros meios de reprodução e a incorporação de objetos não-musicais. Isso impactou diretamente no industrial, na música eletrônica e no krautrock.

Ao contrário da música tradicional, cuja execução é iniciada com uma partitura musical, a música concreta parte da coleta de sons já gravados e os transforma em composição por intermédio de repetição, uso de máquinas, inversão, extensão e outras técnicas que envolvem a manipulação da mídia. Abaixo tem um trecho do documentário “The New Sound of Music”, da BBC, que mostra um pouco desse processo.

Este método envolve a transformação do som por meio de acelerações, desacelerações, filtragem etc., manipulação sem processamento, repetindo-os ou montando-os juntos e, em seguida, organizando esses sons, semelhante às técnicas de edição de filmes, sem as tradicionais partituras. A composição de Stockhausen usando helicópteros e violinos exemplifica a extrapolação dos limites entre o que pode ou não ser considerado como objeto para a música. Para esses propósitos, Schaefer oferece uma divisão entre os objetos-som e os objetos-música e os organiza como instrumentos musicais para criar uma linguagem e experiência, refletindo não apenas sobre as melodias, mas também sobre a mente do compositor.

Burroughs

William S. Burroughs, figura-chave da Geração Beat e da literatura pós-moderna, contribuiu com algumas ideias sobre o modo como enxergava a sociedade, as estruturas de poder e uma forma de construção narrativa inspirada pelos dadaístas.

Retratava as figuras de autoridade e as agências de controle como uma única entidade metafórica, representadas como uma máquina, expressando a sua profunda desconfiança em relação à tradição, à autoridade e à ordem e presença constante em seus escritos. Essa representação deu à música industrial uma profundidade única, oferecendo aos músicos uma forma de questionarem e desafiarem as normas sociais e as estruturas de poder.

Burroughs expunha a escravidão mecanizada dos seres humanos por essas máquinas metafóricas, pois acreditava que a linguagem e os sistemas eram usados para manipular e reprimir os indivíduos e procurou interrompê-los com o emprego de uma técnica chamada de recorte ou “cut-up”.

Inicialmente criado pelos poetas dadaístas, esta técnica consiste em rearranjar e juntar diferentes textos ou sons para criar significados e narrativas. Burroughs a utilizou em seu trabalho colaborativo com Brion Gysin, “The Third Mind”, em um estilo fragmentado e desorientador que espelhava o caos da sociedade.

Música industrial para…

Há quem argumente que só existe a partir dos registros e projetos lançados pela Industrial Records e que, depois de Throbbing Gristle, Cabaret Voltaire e outros artistas da década de 1980, não existe um industrial “verdadeiro”, sobretudo pela nomenclatura surgir com uma fala de Monte Cazazza, “Música industrial para pessoas industriais”, em referência à gravadora.

Contudo, o gênero industrial é vasto e diversificado, crescendo e incorporando muitos elementos de outros mais convencionais. Caracteriza-se pela rispidez e brutalidade, com ruídos recorrentes, sintetizadores e sons produzidos com instrumentos não-musicais, como objetos de metal e máquinas. Usa muita distorção, microfonia, processamento de sons e ritmos mecânicos repetitivos.

As letras frequentemente abordam temas de dissidência política, crítica social, alienação, distopia e transgressão. Desnudam os aspectos mais sombrios da experiência humana e dos distúrbios psicológicos, além de assuntos polêmicos como fascismo, violência, sexismo e outros, com o propósito de provocar o público e as pessoas de fora da cena

As apresentações ao vivo podem incorporar multimídia, como videoarte ou shows de luz, criando experiências imersivas, além de teatralidade envolvendo figurinos e atos dramáticos, como acontece com Throbbing Gristle e Einstürzende Neubauten.

Traz uma atmosfera engajada em críticas relacionadas às estruturas de poder de controle e ao impacto da tecnologia na sociedade, com artistas defendendo os direitos dos animais, o anarquismo, o anticapitalismo e o anticonsumismo. No entanto, há quem argumente que há apenas uma estética chocante despolitizada e desnecessariamente ambígua, havendo projetos como Genocide Organ, Whitehouse, Prurient, Folkstorm e Haus Arafna flertando com temas polêmicos e sensíveis, sem nunca apresentar claramente para qual lado estão apontando e, constantemente, são considerados como fascistas por pessoas de fora.

Infelizmente há muitos artistas com ideologia fascista ou envolvidos com a promoção do discurso de ódio, o que ajuda com a má-reputação do estilo, como Mikko Aspa e o selo Defeat Never Victory Forever, que lança e apoia grupos ligados à extrema direita e a discursos de ódio. Felizmente esses grupos são minoria e constituem uma cena separada.

O etos DIY (faça você mesmo) ligado à produção, distribuição e promoção de discos, alinha o estilo ao movimento punk, apesar de seus participantes não terem conexões diretas. Incentiva a organização de eventos independentes e o lançamento de músicas, ao mesmo tempo em que promove músicos que lançam suas próprias gravações de forma independente.

Música industrial hoje

Com o surgimento da chamada primeira onda, vários outros gêneros surgiram incorporando diversos elementos. Dentre eles estão o Power Electronics, o Harsh Noise, o Neofolk e várias fusões com rock, metal, electro e synthpop. Todos são chamados coletivamente de post-industrial, que vem crescendo e apresentam misturas cada vez maiores com outros elementos musicais.

Grupos como Rammstein, Ministry, Nine Inch Nails e KMFDM alcançaram relativo sucesso e levaram-no a um público mais amplo na década de 1990 e no início dos anos 2000, misturando industrial com o metal e o rock, mas argumenta-se que estes trabalhos diluíram a essência original vanguardista e contracultural nesse processo, uma vez que conversam com grupos mais amplos e são aceitos em eventos de grande porte e gravadoras mais populares.

O EBM, sigla para Electronic Body Music, combina elementos do industrial com batidas de dance music, minimalismo eletrônica, melodias cativantes e vocais hostis. Entre suas principais artistas estão Front 242, Nitzer Ebb e VNV Nation, que têm um público em outras subculturas, com boa aceitação entre os góticos.

O Neofolk incorpora música folclórica tradicional, folk rock e ambientações ruidosas. Explora temas relacionados à natureza, ao folclore e ao espiritualismo pagão, mas também imerso em controvérsias, pois seu maior representante, Death in June, usa simbolismo e imagens associadas a movimentos fascistas e de extrema direita. Outros subgêneros, como o dark folk e o martial industrial emergem dentro dessa cena.

O Electro-Industrial vai num caminho diferente do minimalismo do EBM, com timbres mais complexos e em camadas, incorporando techno, trance, rock e metal. Skinny Puppy, Front Line Assembly, Android Lust e Haujobb são algumas bandas notáveis.

O Power Electronics se destaca por seu som agressivo e pesado, com ruídos abrasivos, vocais intensos e temas voltados a questões sociais e políticas, como opressão, controle governamental e aspectos obscuros da natureza humana. As apresentações são polêmicas e provocativas, desafiando o público tanto sonora quanto tematicamente. Como projetos notáveis estão Whitehouse, Consumer Electronics, The Grey Wolves e Ramleh.

O Harsh Noise surge no meio dos anos 1990 e consiste basicamente em ruídos, dissonâncias, com distorções extremas e ausência completa de melodia. Esse é um nome comum a artistas que lançam seus discos com poucas preocupações além do próprio ruído, embora existam artistas que o usam como plataforma para diversos tipos de discursos. Também é um rótulo usado para artistas de outras denominações extremas do industrial antes de terem seus estilos mais bem denominados, como aconteceu com vários artistas de Power Electronics.

O harsh noise japonês, também chamado de Japanoise, emergiu principalmente de Osaka e Tóquio na década de 1980 e é marcado por ser extremo e violento. Merzbow, Masonna, Hijokaidan e Incapacitants são alguns de seus representantes, jogando para o ouvinte tudo que sociedade pós-guerra muito conservadora tem a oferecer e, ao mesmo tempo, ampliando os limites da experimentação sonora. Isso criou uma forte conexão desses artistas com a cena punk japonesa e, não por acaso, muitas bandas de hardcore tocavam em eventos de japanoise.

Atualmente passamos por um renascimento dos projetos/bandas com uma abordagem old-school, como Trepaneringsritualen, Pharmakon, Teatro Satânico e Prurient. Mais mulheres estão em projetos, como Puce Mary, Lana del Rabies, Uboa, HIDE, Lingua
Ignota e outras.

A cena do hip-hop experimental está flertando com elementos industriais em artistas e projetos Death Grips, Dälek, clipping, Moor Mother, JPEGMAFIA e Backxwash. Eles juntam todo o histórico de luta contra as opressões e o racismo, com a agressividade do estilo.

Industrial continua aí desafiando as convenções a servindo de ferramenta para que mais pessoas possam transgredir os limites da música convencional. Com mais de cinquenta anos de existência, está muito longe de definhar.

Algumas leituras complementares

Teruggi, Daniel. Musique Concrète Today: Its reach, evolution of concepts and role in musical thought. Organised Sound, vol. 20, no. 1, 5 Mar. 2015.

Chessa, Luciano. Luigi Russolo, Futurist: Noise, Visual Arts, and the Occult.

Huq, Rupa. Beyond Subculture. Routledge eBooks, 24 Jan. 2007.

Attali, Jacques. Noise: The Political Economy of Music.

Demers, Joanna. Listening through the noise: the aesthetics of experimental electronic music. Choice Reviews Online, vol. 48, no. 07, 1 Mar. 2011.

Reed, S. Alexander. Assimilate: a critical history of industrial music. Oxford University Press.

Goddard, Michael. Audiovision and Gesamtkunstwerk: The Aesthetics of First- and Second-Generation Industrial Music Video.

Novák, David. Japanoise. Duke University Press, 2013.

Woods, D., Bret. Industrial Music for Industrial People: The History and Development of an Underground Genre. 2007.

1. Algo interessante sobre a música industrial é que ela não se estabelece como uma subcultura em nenhum lugar. A denominação que alguns autores dão para "rivethead" está mais ligada ao fã de EBM e de rock industrial que frequenta casas noturnas voltadas aos góticos.
2. Embora a música industrial em si não tenha se filiado a nenhum movimento social, exceto em grupos como Test Dept, não se pode negar o quanto os seus participantes estavam conectados com esse espírito de libertação.
3. A título de curiosidade, Genesis P-Orridge era uma pessoa trans, que se considerava homem e mulher ao mesmo tempo. Peter ‘Sleazy’ Christopherson, também fundador do Coil, era um homem gay e, de acordo com Cosey Fanni Tutti, em sua autobiografia Art, Sex, Music, todos ali mantinham relações sexuais não-normativas.
4. O Futurismo tinha algumas ideologias belicosas, como a destruição do que consideravam mais fraco, além de uma rejeição completa ao passado e a guerra como um agente de limpeza no mundo. Esses ideais encontravam eco na ideologia fascista que surgiria na Itália algum tempo depois, com alguns de seus artistas se alistando no exército de Mussolini e morrendo na guerra. Contudo, isso não torna o movimento fascista por si só, uma vez que muitas das suas contribuições permitiram a artistas de fora da Itália representar a sua destruição aos valores da elite dominante, como ocorreu em Portugal e no Brasil com o poeta Oswald de Andrade.
5. Muitos dos instrumentos originais de Marinetti foram destruídos durante a Segunda Guerra Mundial.

Editor, dono e podcaster. Escreve por amor à música estranha e contra o conservadorismo no meio underground.