Porque a cena metal não deve apoiar a transfobia

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Faz um bom tempo que não escrevo artigos / editoriais para o Groundcast e tem um monte de texto meio pronto sempre que aparece uma pauta nova. Mas dessa vez é diferente, porque envolve um grande festival na Europa e alguns problemas relacionados à transfobia.

Tomei conhecimento que a pessoa responsável pelo agendamento das bandas Bloodstock Open Air, evento britânico de heavy metal que existe desde 2001, escreveu uma postagem que não soou bem. Reproduzimos abaixo um print do texto, já apagado da conta dela:

Em tradução livre:

Se você começar a colocar pronomes em seu e-mail como eu devo me dirigir a você como “ele/dele” e “ela/dela”, colocarei-os na lixeira”

Esta não é uma observação, é apenas a minha opinião, a minha escolha apenas para pessoas que usam pronomes.

Vamos entender uma coisa: o uso desses pronomes, inicialmente, tem como prerrogativa, deixar claro para as pessoas que a aparência não dita como a pessoa se identifica.

Neste texto tem uma explicação bem simples sobre isso, mas em resumo é que isso serve tanto para pessoas trans possam ter um tratamento mais humano e digno, sobretudo as pessoas que não passaram ou não desejam fazer redesignação sexual ou mesmo um processo de hormonização para se parecer com o gênero com o qual se identificam.

Para pessoas cisgêneras, é uma forma de ajudar a normatizar e aceitar as variedades de expressões de gêneros e identidades, sem precisar do rótulo cis e trans. Até porque homem trans não deixa de ser homem, por exemplo.

Aqui não quero e nem desejo abrir uma discussão sobre gênero e identidade. O meu ponto é que, ao usar os pronomes, você ajuda pessoas trans a serem aceitas e a se aceitarem melhor. Outras redes permitem isso, como o Instagram e eu, pessoalmente, nunca vi problemas com isso.

Contudo, o texto da Vicky deixa claro que ela enxerga as pessoas tão somente pela aparência e as trata de acordo com o que vê. Isso é um problema, uma vez que o Bloodstock tem como uma de suas bandeiras o acolhimento e a aceitação de diferenças.

Tanto que fiquei sabendo dessa treta por uma postagem da The Sophie Lancaster Foundation, assinado pela mãe dela. Para quem não conhece, Sophie Lancaster foi uma jovem morta apenas por ser gótica, num episódio que mescla intolerância e violência extrema.

Em tradução livre

Declaração de Sylvia Lancaster.

Como podem imaginar, estamos nos recuperando do tweet da noite anterior de Vicky Hungerford, do Bloodstock.

Bloodstock sempre deu as boas-vindas à Fundação e o palco de Sophie Lancaster é uma fonte de orgulho.

Para uma instituição de caridade cujo fundamento é baseado no combate à intolerância e ao preconceito, nossa presença contínua no Bloodstock parece insustentável.

Ao mesmo tempo, acreditamos em educar as pessoas sobre essas questões e, ao trazê-las conosco, todos avançamos. Sendo honestos, podemos ver mérito em nos afastarmos e também em estarmos no lugar que tão evidentemente precisa do nosso trabalho.

Tendo perdido minha filha para o ódio e a intolerância, não considero levianamente os comentários de Vicky.

No nosso trabalho, diariamente encontramos pessoas que lutam contra a própria identidade ou estão lutando por causa do preconceito, assédio ou violência a que são submetidas de outras pessoas, simplesmente por serem quem são.

Estaremos nos encontrando com Bloodstock para falar sobre nossos relacionamentos futuros.

Amor e luz

Sylvia

Dra. Sylvia Lancaster OBE

Chefe executiva

Fundação Sophie Lancaster

Depois de ler esse texto, antes mesmo de ir para sites como o Metal Sucks e o Loudwire, comecei a procurar sobre o assunto e a ler as postagens seguintes sobre o assunto. Vamos ao primeiro pedido de desculpas:

Em tradução livre:

Então parece que meu último tuite ofendeu as pessoas e isto NÃO era a minha intenção. Deletei-o assim que algumas pessoas começaram a se incomodar e eu NUNCA tive a intenção de incomodar ninguém. Se você se sentiu ofendido pelo meu último tuite, então peço desculpas.

Só que a internet faz algo que eu, pessoalmente, considero abominável, que é caçar mensagens de anos anteriores e levar como se fosse a posição atual da pessoa. Nessa postagem, Vicky reclama do gênero neutro e considera tudo uma porcaria e chamou a todos de “floquinhos de neve”, expressão usada sobretudo para criticar (nem sempre de forma justa), pessoas com demandas superficiais.

Sou contra porque em dois, três anos, a nossa cabeça muda muita coisa. Se vocês ouvirem nossos primeiros programas de podcast, tem muita coisa ali de teor sexista e até umas merdas que hoje eu não falaria. Nem precisa ir muito longe: vai nos programas de 2017 e vai notar muita coisa ali que hoje tenho vergonha de falar.

Mas a gente aprende e, por sorte, nosso público é adulto o bastante para entender. E até penso ser o caso da Vicky, porque sim, o que ela falou é bem ruim, fez muita gente sair da equipe do Bloodstock e duvido que alguma banda queira agendar shows com ela.

Essa é a mesma postura do editor da Metal Hammer e da Metal Sucks. Só que não é exatamente esse o tom que quero colocar para este editorial e sim retornar a ideia de como a transfobia é algo que a gente precisa lutar contra constantemente.

A questão dos pronomes é apenas um dos exemplos, emboraesse “cancelamento” é algo que se levou mais a sério do que um festival finlandês por aí que está trazendo altas bandas fascistas e que nem a imprensa especializada está pegando tanto no pé.

Vejo, na realidade, a necessidade de também educar as pessoas e, no caso da Vicky, trabalhar para que essa imagem de transfóbica seja consertada, não apenas com palavras, mas com ações. Enxergo aí uma possibilidade de abrir espaços para pessoas trans se apresentarem, com o crescente número de músicos se declarando não-binários e transgêneros. Incentivar campanhas de acolhimento e ajuda.

Segundo uma estatística, lá no Reino Unido, as pessoas trans têm duas vezes mais chances de serem vítimas de violência. Nos últimos cinco anos, os crimes contra pessoas trans quadruplicaram e quatro em cada cinco pessoas trans sofreram algum tipo de crime ligado à transfobia.

Cá no Brasil a situação também não muda. Tem a Föxx Salema, que sofre perseguição até hoje, muito por ser uma mulher trans dentro do heavy metal. Há pouquíssimo apoio para homens e mulheres trans dentro da nossa cena alternativa e nem preciso dizer que nossos dados de violência são ainda mais alarmantes.

Por isso que este texto é sobre como a transfobia precisa ser tratada com educação, em primeiro lugar, para pessoas que ainda podem ser educadas. Não defendo, claro, diálogo com todo transfóbico. Há gente que nem chance para isso dará. E o caso do Bloostock deveria servir de alerta que o underground precisa ser mais acolhedor. Em qualquer lugar do mundo.


Editor, dono e podcaster. Escreve por amor à música estranha e contra o conservadorismo no meio underground.