Quando criticar é importante

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Uma das coisas mais importantes dentro de qualquer meio artístico é a questão da crítica. Não apenas aquela especializada, mas qualquer uma que permita ao artista evoluir dentro daquilo que produz ou faz, como também para que o público fruidor possa, com um pouco de esforço, ser mais seletivo e conseguir absorver algo além de uma imagem de artista.

Infelizmente, dado a um momento de segmentação do universo musical em muitos nichos e a pasteurização completa da música mainstream, em busca do lucro fácil com custo muito baixo, aliado a uma idiotização de seu público, fica cada vez mais complicado estabelecer qualquer tipo de crítica sensata sem ser taxado de mil e uma coisas. Se o artista ou a artista representar nichos socialmente fragilizados, que buscam representatividade dentro de um sistema de consumo, você automaticamente será colocado no papel do opressor – ainda que você também seja uma pessoa pertencente a uma categoria social oprimida.

O assunto deste artigo se pauta neste meme da página Anarcomiguxos, que impressiona não por oferecer uma crítica sensata a um modo de como as coisas estão, mas por querer colocar um problema onde ele não existe, como se tudo que fosse contra uma pessoa gay (ou qualquer outra minoria) fosse tão somente fruto do preconceito social. A verdade é bem mais complexa e mais dolorosa, infelizmente.

Vamos tentar entender o seguinte: as críticas à Pablo Vittar são, na maioria das vezes, de cunho homofóbico. Isto é comprovável e pode ser visto quando se ataca a pessoa pela sua sexualidade. Também é notório saber que quando evocam a ideia de um “gay de respeito”, procura-se colocar uma imagem de que existem gays que podem ser aceitos, desde que não sejam espalhafatosos.

Dai dizer que o Freddie Mercury se encaixava no padrão heteronormativo e que parecia hétero é forçar MUITO a barra, sobretudo pelo extremo grau de anacronismo e falta de noção. É o tipo de tentativa que faz com que não se possa criticar ninguém se for negro, se for mulher, se for transexual e qualquer coisa do tipo. Confere-se uma blindagem contra qualquer tipo de coisa, argumentando-se em prol de um suposto ativismo, que nada mais faz do que reforçar a relação de consumo.

Entende-se uma coisa: Pablo Vittar, enquanto artista, é criticada da mesma forma que inúmeros cantores sertanejos, muitos funkeiros e outros o são pela sua baixa qualidade musical. Basta uma procurada para encontrar coisas como o Bruno e Barreto sequer conseguindo pronunciar direito as palavras. Muitas das críticas feitas à pessoas desse tipo de segmento são sim como um reforço de como militâncias cooptadas pelo mercado consumidor estão pouco preocupadas com a qualidade, desde que seja vendida uma mensagem de engajamento.

Portanto, não é preciso colocar o Freddie Mercury como alguém “aparentado” como hétero para dizer que ele não incomoda os homofobicos, porque isto é uma grande mentira. Ele é aceito porque o Queen se tornou uma banda enorme, fazendo sucesso numa época em que a segmentação do público para música ainda era muito incipiente, naquele contexto em que as pessoas escutavam de tudo, mas não com um ecleticismo musical. Segundo Liesbet van Zoonen, cujo artigo se encontra neste link, artistas como Freddie Mercury, Boy George e o Prince surgiram após os artistas glam romperem com a questão do gênero, criando uma cultura de subversão ao estereótipo masculino.

Nessa mesma época gêneros predominantemente masculinos, como o heavy metal, também buscavam essa quebra do padrão masculino, adotando cabelos compridos no mesmo estilo que as mulheres utilizavam, usando maquiagem colorida, na forma de se opor a um sistema autoritário de mundo, ainda que em suas letras, capas de discos e atitudes revelassem um tipo bastante misógino de comportamento e visão de mundo. Isto significa que não dá para dizer que alguém como o Mercury era heteronormativo, porque nesta época muito da música buscava um rompimento com relação ao sistema e ir contra padrões de gênero era mais agressivo do que falar de diabo o tempo todo.

Também vale a leitura deste artigo, que explica como o padrão “heteronormativo” dele fez com que sofresse censura nos EUA, como era facilmente aceito por ser “mais hétero” que outros gays. Na mesma esteira, pode-se colocar que o senhor Mercury desafiava o padrão do homem “macho” durante um bom tempo com o Queen e que, posteriormente, passou a se tornar uma paródia do heterossexual num processo chamado de hipermasculinidade, que também era utilizado por um outro grupo, que se tornou muito proeminente no meio LGBT. Você consegue pensar em quem seria?

Pois é, quem diria…

Tanto o Freddie Mercury quanto o Village People se utilizavam do excesso de masculinidade para parodiar o que era o padrão gay masculino entre 1970-1980, que era de um cara extremamente macho. Enquanto nos anos 1970 o Queen trazia uma imagem muito mais masculinizada do seu vocalista, nos anos 1980, justamente por conta de ter cortado o cabelo, mantido um bigode e assumido uma postura cada vez mais afeminada, conforme dito por Rishi Malhotra, contribuiu cada vez mais para que ele fosse visto como um homossexual e rompesse com o padrão heteronormativo de sua época.

Com tudo isto, por que o meme da Anarcomiguxos se torna uma sucessão de bobagens sem nenhum sentido? Porque dizer que o Freddie era “heteronormativo” vai contra a própria história dele como músico do Queen como também nega que os contextos mudam as próprias percepções do que é ser hétero ou não. Igualmente ruim este tipo de questão resume todas as críticas a você ser contra a minoria representada pelo artista, oferecendo aí uma blindagem quase que automática para qualquer coisa. Algo que elimina qualquer possibilidade de minimamente ser crítico.


Editor, dono e podcaster. Escreve por amor à música estranha e contra o conservadorismo no meio underground.

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