A politização necessária do underground

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Neste ano de 2020 fomos assolados por uma pandemia sem precedentes, além da tentativa frustrada de retomar uma onda conservadora ao redor do mundo. Ao mesmo tempo houve movimentos como o Black Lives Matter que, saindo do escopo apenas internético, tomou as ruas em protesto ao assassinato de George Floyd e de tantos outros negros americanos, constantemente brutalizados pela polícia e pelo Estado.

Aconteceu também a derrota da extrema direita, com a perda de Trump nas eleições americanas, assim como o declínio da AfD na Alemanha, embora ainda existam muitos países com um governo extremamente autoritário e tentativas de terrorismo promovidas por este espectro político. Ou seja, num mundo polarizado, é importante que as pessoas assumam suas posições, ainda que concordando com o status quo.

Dentro do meio underground existe resistência na politização dos músicos e também dos próprios fãs. Bandas e artistas buscam um discurso higiênico e asséptico, para não incomodar seus fãs. Pessoas ligadas a diversas subculturas querem trabalhos que lhes entregue apenas um escapismo barato em troca de alguns trocados (ou plays em streamings).

Há também indignação daqueles a repetir o mantra do “rock e política não se misturam”. Observando sites e páginas voltadas a qualquer estilo de rock, há muita gente defendendo essa separação. Pessoalmente conheço bandas cujos idealizadores nunca tocam em política ou nunca fizeram nenhum tipo de manifestação contra o conservadorismo, mas que, por razões de mercado, usaram o Black Lives Matter no Instagram numa tentativa pífia de autopromoção. Também conheço artistas que se gabam de serem anarquistas, de votarem nulo e nunca participarem da vida política, acreditando que “é tudo farinha do mesmo saco” e, claro, não fazem nenhum esforço para construir uma frente que se oponha, de modo enérgico, a tudo que está por aí.

Nesse caminho o pop, o hip hop e até mesmo o pop rock mainstream vêm abraçando o lado político. Rihanna ganha prêmio pelo seu ativismo, Lady Gaga fez campanha massiva para o John Biden (ainda que este redator tenha inúmeras considerações desfavoráveis a ele, representa muito num país com movimentos neofascistas tendo representação federal) e ainda dá para citar mais gente aqui, como o Tico Santa Cruz e os Detonautas, que levaram para o grande público críticas sociais contundentes.

Dentro do alternativo, do underground, não faltam exemplos de pessoas que se dizem “desconectadas da política”, mas sempre apoiando o lado mais conversador e mais moralista. Há tipos bem pontuais em grupos de thrash e punk na busca por uma mensagem de teor político e de conscientização, mas no grande universo das bandas do rock e do metal, pouca gente, de fato, assume alguma postura crítica que não seja uma visão infantilizada e romântica de anti-governo.

Reitero que ser politicamente orientado não é, necessariamente, você ter de falar de política o tempo todo, até porque as temáticas de cada artista devem refletir também suas preferências. Ser politicamente orientado é, num primeiro momento, manter posições além do que as letras podem expressar e ser underground deveria ser lutar contra discriminação sexual e étnica, ser contra o conservadorismo e apoiar pautas e lutas populares. Nada disso precisa ser partidário ou levantar bandeira de esquerda, embora isso se alinhe com esse tipo de discurso, em maior ou menor grau.

Recentemente o Heilung teve de deixar clara a sua posição de ser contra os discursos de ódio, ainda que a banda se coloque sempre como fora de qualquer agenda política. Rob Halford deixou claro o quanto as mulheres precisam ser valorizadas em seus trabalhos, uma postura digna de alguém que está a frente de uma banda com muita estrada e tem muitos fãs.

Temos ainda que enfrentar muito machismo, como no show de horrores que se seguiu com a separação do Nervosa. Os inúmeros casos de transfobia que a Foxx Salema precisa enfrentar até hoje, tanto por ser uma mulher trans como por ser uma mulher trans de esquerda. A homofobia, o racismo, o ódio contra pobres e trabalhadores, tudo isso é ainda pauta de uma parcela significativa das bandas e dos fãs, não apenas dentro do metal, mas também no gótico, no alternativo e tantas outras.

Faltam mais atitudes que não fiquem apenas na “culpabilização do homem branco cisgênero”. Culpabilização é também estratégia da extrema direita para pautar o seu moralismo. São necessárias mais atitudes, como abrir espaços para que mais pessoas tenham voz e possam mostrar seus conflitos. Aceitar as contradições das pessoas no lugar da cultura do cancelamento, que não serve para absolutamente nada, como aconteceu com o Nergal (Behemoth), com o Andrew Clinco (Drab Majesty). Parar de apontar qualquer coisa como fascismo, como acontece em grupos denominados antifascistas (que sempre me soam como gente muito imatura politicamente para compreender o mundo). Apoiar coletivos que tenham pautas de inclusão e também de conscientização.

Elaine Campos à frente da Rastilho. Foto por Ricardo dos Santos.

Iniciativas como o Black Metal anarquista são um bom começo, junto de artistas como o Dawn Ray’d, Gaylord, Feminazgûl, além de bandas brasileiras como Surra, Manger Cadavre?, Eskröta, Vociferatus, Desalmado, entre outras. Contudo, é preciso que mais gente se mobilize. Artistas com uma base de fãs grande precisam se mobilizar sem medo de perder fãs. Pessoas que se dizem antifascistas precisam fazer um discurso para fora das redes e ocupar os espaços. Produzir conteúdo, conscientizar, politizar seus fãs. O rap nacional faz bem esse serviço junto ás comunidades, reforçando o cotidiano e a conscientização como arma para mudar o sistema. O pop vem aparecendo com um discurso pluralizado e pró-minorias, ainda que com um verniz comercial, ainda sim é muito mais que aquele roqueirão que se coloca “contra o sistema”.

Essa, com certeza, é a hora de ficar do lado de quem realmente é underground, que está marginalizado e excluído de nossa sociedade. Porque fazer música para playboy é fácil e é confortável não mexer nas estruturas. A sociedade muda e está na hora de as cenas musicais underground começarem a também ser mais receptivas, porque seus discursos dialogam também com mulheres cis e trans, com negros e negras e com todo o espectro LGBT.


Editor, dono e podcaster. Escreve por amor à música estranha e contra o conservadorismo no meio underground.