Música e política se misturam sim

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Você que entendeu tudo muito errado
Rage Against the Machine

Não é de hoje que há pessoas que aparecem com o discurso de que “política e música não podem se misturar” quando o seu artista resolve expressar sua posição contra pessoas e instituições de caráter conservador e reacionário.

Só que essas pessoas estão erradas até o último fio do discurso. E continuarão erradas enquanto persistirem nessa ladainha de que o músico ou a arte precisam ser isentos para a apreciação desprovida de qualquer tipo de materialidade.

Não advogo em favor de outro clichê, aquele que diz “tudo é política” ou mesmo “toda arte é política”. Isso é reduzir política, seja ela institucional ou não, a qualquer manifestação de caráter individual. Seria como, por exemplo, dizer que beber cerveja é um ato político, comer comida saudável é um ato político. Não são, exceto em determinados contextos os quais esses atos possam ter alguma relevância social.

Public Enemy

Contudo, é impossível ainda dizer que a arte não pode ser política e deve servir apenas como um escapismo barato. A música, como manifestação da linguagem artística, também não está isenta do seu período histórico, nem mesmo das ideologias de quem a compõe. Isso remonta um dos fatos mais retumbantes acerca da comunicação humana: ela é sempre ideológica e parcial.

Um dos grandes problemas é que gêneros que começaram como uma oposição ao mercado vigente se tornaram produtos a serem consumidos. A música, para expressão, vai assumir em determinados momentos um caráter de mostrar a indignação do artista perante o mundo e compartilhar essa indignação para com outras pessoas.

Black Pantera

Esse conceito vai contra a chamada “música absoluta”, que, teoricamente, não falaria sobre nada de forma explícita e teria apenas a função de causar um prazer estético em seu ouvinte. Essa teoria foi desenvolvida no começo do Romantismo alemão, apenas para instrumental e seria livre para não representar nada. Tem aqui um texto legal explicando melhor sobre isso, inclusive mostrando alguns contrastes e críticas a esse modelo.

Nesse pensamento romântico de que a arte é desconectada de sua cultura é que reside a ideia de que a música não pode falar de política. Isso seria tolher a liberdade do artista e transformá-lo em panfletário e partidário. Isso também representa a ideia de que, ao se transformar em produto, esse fazer artístico se torna, automaticamente, algo cuja função é agradar e, convenhamos, agradar nem sempre será o objetivo principal de quem cria.

As pessoas estão acostumadas com o hip hop ter um posicionamento claro contra problemas de ordem política, como racismo, violência policial, pobreza do povo preto, entre outros. O rock (e consequentemente o metal) entraram numa tendência de não mexer com política de forma explícita, tornando-se apenas uma forma de escapismo e de fuga da realidade.

Living Color

Só que isso é errado. A música, enquanto produto, precisa se adequar ao seu público, mas também pode trazer discursos problemáticos, como no caso do chamado sertanejo universitário, promovendo de forma massificada uma visão idealizada dos grandes latifundiários ou ainda bandas que abertamente usam seu espaço para propagar racismo, xenofobia, sexismo e outras ideologias de caráter excludente.

O rock nasceu da divulgação da música negra para os brancos, que não a escutariam por existir, lá nos EUA, a divisão entre coisas voltadas apenas para brancos e apenas para negros. Com isso houve uma ruptura que permitiu o surgimento de gente como o Elvis Presley ao mesmo tempo em que artistas negros como Chuck Berry conseguiam espaço não apenas entre os afro-americanos.

London After Midnight

E tudo isso, caro leitor ou leitora, é político, uma vez que abriu espaço e rompeu com diversos preconceitos para poder existir. Essencialmente, o rock vai bater contra convenções sociais, muito embora também fosse feito por pessoas que, em geral, era de classe média e, com o tempo, teve seu discurso assimilado pelas massas e amansado.

Joanna Demers, que escreveu o excelente Listening through the Noise: The Aesthetics of Experimental Electronic Music, descreve muito bem o que esse conceito de música desconectada de seu contexto cultural representa: a exclusão de pessoas não-brancas, não-europeias, não-heteronormativas, além de mulheres, de toda a produção e acesso.

Roger Waters

Isso ajuda a entender a razão de gente como a Ellen Jabour se irritar com o tom politiqueiro do Roger Waters ou de ter pessoas muito incomodadas com o lado político do Rage Against the Machine. São posições extremamente preconceituosas, racistas e classistas, vindas de pessoas com um discurso alinhado a um mundo idealizado e asséptico, sem a presença de pessoas pretas, de homossexuais, de gente pobre e outras mazelas com as quais a sociedade que vê tudo de cima tem nojo de lidar.

Muitas vezes usa-se a retórica de que pagou para ouvir música e não para ouvir discurso político. Decerto, se quer apenas ouvir, têm as mídias físicas e os serviços de streaming. Infelizmente, tanto no caso do Waters quanto do Rage Against the Machine, será impossível apreciar sem ter o lado político desses artistas exposto, uma vez que, cada qual à sua maneira, suas composições são veículos para críticas sociais.

Manger Cadavre?

Curiosamente, as pessoas que reclamam do Roger Waters, do Rage Against the Machine, da Anitta, do Nando Reis e outros que se posicionam contra um governo de cunho conservador e antipobre nunca abriu a boca quando outros artistas homenagearam políticos reacionários.

Claro que a gente entende o quanto essa gente, de fato, se incomoda com bandas com posicionamentos políticos fortes. No fundo, são as mesmas pessoas que compartilham uma visão de mundo desconectada da realidade e tentam esconder o seu preconceito. São pessoas cujo pensamento reside não apenas na exaltação de ideais conservadores, mas também na negação de demandas que são legítimas. Talvez devessem ir ouvir sertanejo universitário e Burzum, porque certamente se identificarão com as mensagens e com os músicos.

E quem não fica com esse discurso, tem uma playlist legal com bandas com temas políticos.


Editor, dono e podcaster. Escreve por amor à música estranha e contra o conservadorismo no meio underground.